domingo, 27 de junho de 2010

CULT: Ressurreição

Em seu último grande romance, Tolstói mantém viva a consciência individual
Moscou, séc. 19

Muitos se perguntam por que será que os romances dos “grandes russos” continuam sendo lidos com afã, mesmo hoje, passados quase 200 anos de seu nascimento. Não é apenas pelo fato de eles se preocuparem profundamente com as questões mais pungentes da humanidade e proporem as soluções a que eles chegaram, mas – o que mais espanta – é ver como a história, no decorrer desses séculos, tornou esses conteúdos cada vez mais atuais.

O caso de Lev Nikolaevitch Tolstói (1828-1910) é sintomático. Em particular, em Ressurreição, o último de seus romances longos, iniciado em 1889 e publicado dez anos depois, cuja trama lhe veio de uma conversa com um jurista russo de grande renome (o mesmo que fornecera a Dostoiévski informações sobre casos de justiça criminal, aproveitados em Os Irmãos Karamazov). As descrições cuidadosamente fundamentadas da indiscutível injustiça do sistema judiciário e prisional, na prática e, principalmente, em seus princípios – na Rússia e no mundo –, são gritantes.

A trama é simples, como é simples e clara a linguagem que a narra, que o tradutor conservou. Uma menina particularmente graciosa, Katerina Mikháilovna Máslova (Kátia), filha de uma criada e de pai desconhecido, é semiadotada por duas solteironas da nobreza que vivem em sua propriedade rural, tias de Dmítri Ivánovitch Nekhliúdov, o protagonista da história. Por um lado, Kátia é educada como moça de família, por outro, serve como uma espécie de criada às duas solteironas. Nas férias, o jovem Nekhliúdov, ainda estudante, se apaixona pela linda moça em que Kátia se transformou e, sem que seja confessado, seu amor é correspondido e narrado na primeira parte do livro, por meio de muitas metáforas encantadoras, como mais um dos poéticos idílios bucólicos em que Tolstói era mestre.

Infortúnios
Logo depois começam os males. De volta à capital, o jovem nobre é engajado no exército e, na vida ociosa do oficialato, feita de duelos, bebedeiras, carteado e devassidão, perde sua pureza rousseauniana e se transforma ele mesmo em libertino. Por ocasião de uma volta ao campo, seduz a pobre Kátia, ainda pura e apaixonada. Sua sina é implacável. Mãe solteira, é expulsa pelas tias e, após algumas experiências em que seu trabalho sempre esbarra na concupiscência masculina, acaba entrando para um famoso prostíbulo da capital, onde é acusada de um assassinato por envenenamento, que ela não cometeu.

O destino quer que Nekhliúdov, já mais maduro e cheio de dúvidas quanto à justiça das instituições e da sua própria conduta, quase noivo de Missi, seja convocado como membro do júri que decidirá a sorte da moça. O choque que ele sofre ao descobrir que a acusada é a pobre Kátia, por cuja ruína ele se sente responsável, repercute nele dramaticamente.

Decide então desfazer-se de suas propriedades em favor dos camponeses (aqui Tolstói revela-se adepto das teorias de Henry George: “não dar o mesmo a todos, mas recolhê-lo em uma comunidade que o distribuiria etc.”) e acompanhar a ré, obviamente sentenciada a trabalhos forçados na Sibéria pelos altos funcionários desumanos e corruptos do sistema infame. As vergastadas com que Tolstói castiga esse sistema e a certeira descrição dos ambientes e dos personagens são pontos altos do livro, dificilmente igualados, inclusive porque ele consegue manter, nesse ambiente kafkiano, o suspense e a dinamicidade do desenrolar da história.

Oposição ao catolicismo ortodoxo
Entre os funcionários, não escapam os popes – padres da Igreja Ortodoxa contra cujos dogmas Tolstói se insurgiu. Conforme se sabe, ele viria a ser excomungado, ao propor os cinco pontos do Sermão da Montanha (Evangelho segundo Mateus) como guia para o comportamento moral: pacifismo e consideração por todos, sem distinção; castidade e fidelidade; descomprometimento via juramento; perdão e oferecimento da “outra face”; amor e piedade para com o ser humano, inclusive em relação aos inimigos.

Tolstói associava a Deus a ideia do Bem, e o que vai ditar aos homens o que é esse Bem é sua própria consciência: “Entender a obra do Senhor não está em meu poder” – reflete Nekhlíudov. “Mas cumprir sua vontade, inscrita na minha consciência, isso está em meu poder e isso eu sei de modo indubitável.” Tudo está em não deturpar nem deixar amortecer a consciência dentro de si; essa é a chave da proposta tolstoiana, sabiamente exposta neste seu último grande romance.

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