quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

"O Dostoiévski de Joseph Frank", de David Foster Wallace

O Dostoiévski de Joseph Frank¹

David Foster Wallace
Tradução: Guilherme Bandeira

Dê uma olhada prolegômena em duas citações. A primeira é do Edward Dahlberg, um carrancudo do nível-Dostoiévski, se algum dia em inglês houve algum:

“Os cidadãos se protegem contra os gênios pela adoração icônica. Pelo toque da vara de condão, perturbadores divinos são traduzidos com bordados suínos.[2]

A segunda é do Pais e Filhos de Turguêniev:
- Nesta época, negação é o mais útil de tudo – e nós negamos –
- Tudo?
- Tudo!
O que, não só em arte e poesia... mas também... horrível dizer...
Tudo. Repetido por Bazarov, com uma indescritível compostura.


            Retrospectivamente, em 1957 um Joseph Frank, então com trinta e oito anos, professor de Literatura Comparativa em Princeton, está preparando aulas sobre existencialismo, e começa seu trabalho pelo Memórias do Subsolo de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski. Como todo mundo que leu pode confirmar, Memórias (1864) é um pequeno romance poderoso mas extremamente estranho, e ambas as qualidades têm a ver com o fato de que este livro é ao mesmo tempo universal e particular. A “doença” auto-diagnosticada do protagonista – uma mistura de grandiosidade e auto-desprezo, raiva e covardia, fervor ideológico e inabilidade auto-consciente de agir de acordo com suas convicções: seu caráter paradoxal e auto-negativo – faz dele uma figura universal em quem podemos ver partes de nós mesmos, o mesmo tipo de tipo de arquétipo eterno como Ajax ou Hamlet. Mas ao mesmo tempo, Memórias do Subsolo e seu Homem do Subsolo são de fato impossíveis de entender sem algum conhecimento do clima intelectual da Rússia nos anos de 1860, particularmente o frisson do socialismo utópico e estética utilitarista então em voga entre a intelligentsia radical, uma ideologia que Dostoiévski repugnava com um tipo de paixão com que só Dostoiévski conseguia repugnar.

            De qualquer forma, Professor Frank, enquanto passeava por este pano de fundo contextual particular para dar aos seus alunos uma leitura abrangente de Memórias, começou a se interessar por usar a ficção de Dostoiévski como uma espécie de ponte entre duas formas distintas de interpretar literatura, um viés puramente estético formal vs. uma crítica sócio-barra-ideológica que só se preocupa com as suposições temáticas e filosóficas por trás delas[3]. Esse interesse, mais quarenta anos de trabalho intelectual, rendeu os primeiros quatro volumes da pesquisa projetada em cinco volumes da vida e época e escritos de Dostoiévski. Todos os volumes foram publicados pela Princeton U. Press. Todos os quatro são intitulados Dostoiévski e têm subtítulos: As Sementes da Revolta, 1821-1849 (1976); Os Anos de Provação, 1850-1859 (1984); Os Efeitos da Liberação, 1860-1865 (1986); e esse ano, em uma capa dura extremamente cara, Os Anos Milagrosos, 1865-1871. Professor Frank deve estar lá com seus setenta e cinco anos, e a julgar pela sua foto na contra capa de Os Anos Milagrosos ele não está exatamente vigoroso[4], e provavelmente todos os estudiosos sérios de Dostoiévski estão esperando ansiosamente para ver se Frank agüenta tempo suficiente para trazer seu estudo enciclopédico até o começo dos anos 1880, quando Dostoiévski acabou o quarto de seus Grandes Romances[5], proferiu seu famoso Discurso sobre Púchkin, e morreu. Mesmo que o quinto volume de Dostoiévski não seja escrito, porém, a publicação agora do quarto garante o status de Frank como o biógrafo definitivo de um dos melhores escritores de ficção que já existiu.

** Sou uma pessoa boa? Lá no fundo, eu quero mesmo ser uma pessoa boa, ou eu somente quero parecer uma pessoa boa para que as pessoas (incluindo eu mesmo) me aprovem? Há diferença? Como eu vou saber de fato se estou me trapaceando, moralmente falando?**

            De certa forma, os livros de Frank não são nenhum pouco biografias literárias, pelo menos da mesma forma que o livro do Ellmann sobre Joyce e o de Bate sobre Keats são. Por um lado, Frank é tanto um historiador cultural quanto ele é um biógrafo – seu objetivo é criar um contexto exaustivo e preciso para os trabalhos de FMD, para colocar a vida e a escrita do autor dentro do relato da vida intelectual da Rússia do século dezenove. O James Joyce de Elmann, praticamente o modelo pelo qual quase todas as biografias literárias são medidas, não vai nem perto dos detalhes do Frank sobre ideologia, política ou teoria social.  O que Frank pretende é mostrar que uma leitura abrangente da ficção de Dostoiévski é impossível sem uma compreensão detalhada das circunstâncias culturais nas quais seus livros foram concebidos e para qual eles se dispõe a contribuir. Isso, Frank argumenta, é porque os trabalhos maduros de Dostoiévski são fundamentalmente ideológicos e não podem ser verdadeiramente apreciados a não ser que se entenda os objetivos que os informam. Em outras palavras, a mistura de universal e particular que caracteriza Memórias do Subsolo marca de fato todos dos melhores trabalhos de FMD, um escritor cujo “desejo evidente”, Frank diz, é “dramatizar seus temas morais-espirituais contra o pano de fundo histórico da Rússia”.

            Outra característica fora do padrão da biografia do Frank é a quantidade de atenção crítica que ele devota aos livros que Dostoiévski efetivamente escreveu. “É a produção dessas obras de arte que faz, no fim, valer a pena recontar a vida de Dostoiévski”, seu prefácio ao Os Anos Milagrosos, “e meu propósito, como nos primeiros volumes, é mantê-las em primeiro plano ao invés de tratá-las como um acessório da vida per se”. Ao menos um terço do último volume é dedicado a uma leitura detida das coisas que Dostoiévski produziu na sua incrível meia década – Crime e Castigo, O Jogador, O Idiota, O Eterno Marido e Demônios[6]. O objetivo dessas leituras é explicativo ao invés de argumentativo ou orientado teoricamente; seus objetivos são voltados para explicar tão claro quanto possível o que o próprio Dostoiévski quis que seus livros significassem. Mesmo que este viés assuma que não haja algo como a Falácia Intencional[7], isso parece prima facie justificado pelo projeto global de Frank, que é sempre traçar e explicar a gênese do romance pelo engajamento ideológico do próprio Dostoiévski com a história e cultura da Rússia.

** O que exatamente “fé” significa? Como em “fé religiosa”, “fé em Deus”, etc. Não é basicamente louco acreditar em algo para qual não haja provas? Há realmente alguma diferença entre o que nós chamamos de fé e algumas tribos primitivas sacrificando virgens em vulcões porque eles acreditavam que isso produziria um tempo bom? Como alguém tem fé antes de ser apresentado à razão suficiente para ter fé? Ou é de alguma forma precisar ter fé uma razão suficiente para ter fé? Mas então qual é o tipo de necessidade de que nós estamos falando?**

            Para realmente avaliar a façanha do Professor Frank – e não só a façanha de ter absorvido e digerido as milhões de páginas restantes dos manuscritos de Dostoiévski e notas e cartas e jornais e biografias de contemporâneos e estudos críticos em centenas de outras línguas – é importante entender quantas abordagens diferentes à biografia e críticas ele está tentando casar. Outros estudos – especialmente aqueles com objetivos teóricos – focam quase exclusivamente no contexto, tratando o autor e seus livros simplesmente como funções de preconceitos, dinâmica de poder, e desilusões metafísicas de sua era. Algumas biografias procedem como se os sujeitos de seus próprios trabalhos já tenham sido descobertos, e então eles gastam todo o seu tempo traçando a relação de uma vida pessoal com os significados literários que o biógrafo presume que são fixos e incontestáveis. Por outro lado, muitos em nossa era de “estudos críticos” tratam o autor dos livros hermeticamente, ignorando fatos sobre as circunstâncias do autor e crenças que ajudam a explicar, não só sobre o que é seu trabalho, como também por que possui uma magia particular de uma personalidade mágica individual, estilo, voz, visão, etc.[8]

*      *       *

** É o verdadeiro objetivo da minha vida passar por menos sofrimento e maior prazer quanto possível? Meu comportamento certamente parece indicar que isso é o que eu acredito, ao menos grande parte do tempo. Mas esse não é uma forma de viver egoísta? Esqueça egoísta – não é terrivelmente solitária? **

            Então, biograficamente falando, o que Frank está tentando fazer é ambicioso e proveitoso. Ao mesmo tempo, seus quatro volumes constituem um trabalho muito detalhado e muito demandante de um autor muito complexo e difícil, um escritor de ficção cujo tempo e cultura são alheios a nós. Parece difícil esperar muita credibilidade em recomendar o estudo de Frank aqui a não ser que eu dê algum tipo de argumento de por que os romances de Dostoiévski deveriam ser importantes para nós leitores na América de 1996. Isso eu posso fazer só grosseiramente, porque eu não sou um crítico literário nem um expert em Dostoiévski. Eu sou, porém, um vivente Americano que tanto tenta escrever ficção quanto gosta de lê-la, e graças a Joseph Frank eu gastei os últimos dois meses imerso na Dostoiévskinalia.

            Dostoiévski é um titã literário, e de alguma forma isso pode ser o beijo da morte, porque fica fácil considerá-lo como qualquer outro autor canônico decomposto, amavelmente morto. Seus trabalhos, e a grande montanha crítica que ele inspirou, são sempre aquisições requeridas para as bibliotecas... e lá normalmente os livros permanecem, amarelando, cheirando como livros verdadeiramente velhos cheiram, esperando para que alguém tenha que fazer um trabalho de conclusão de curso. Dahlberg está bem certo, creio eu. Fazer de alguém um ícone é transformá-lo em uma abstração, e abstrações são incapazes de uma comunicação vital com as pessoas vivas[9].

*      *       *

** Mas e se eu decidir que há um objetivo diferente, menos egoísta, menos solitário para minha vida, não será a razão para esta decisão meu desejo de ser menos solitário, significando sofrer menos dor em geral? Pode essa decisão de ser menos egoísta ser algo além de uma decisão egoísta?**

            E é verdade que há traços nos livros de Dostoiévski que são alheios e desconcertantes. Russo é notoriamente difícil de ser traduzido para o inglês, e quando você adiciona a essa dificuldade os arcaísmos da linguagem literária do século dezenove, a prosa/diálogo de Dostoiévski pode ficar com maneirismos e pleonástica e boba[10]. Mais, há a empolação da cultura na qual os personagens de Dostoiévski habitam. Quando as pessoas estão incomodadas, por exemplo, elas fazem coisas como “balançar seus punhos” ou chamam umas às outras de “canalhas” ou “voam para cima” das outras. Falantes usam pontos de exclamação em quantidades vistas hoje somente em tiras de humor. A etiqueta social hoje nos parece rígida ao ponto do absurdo – pessoas estão sempre “pedindo explicações” entre elas ou mesmo “sendo recebidas” ou “não sendo recebidas” e obedecendo a convenções de boas maneiras barrocas mesmo quando elas estão furiosas[11]. Todo mundo tem um sobrenome longo e difícil-de-pronunciar e um nome Cristão – mais patronímico, mais algumas vezes  um diminutivo, então você quase precisa manter uma tabela de nomes dos personagens.  Categorias militares obscuras e hierarquias burocráticas abundam; além disso, há uma rígida e totalmente bizarra distinção de classe que é difícil fixar e entender suas implicações, especialmente porque a realidade econômica da sociedade russa antiga é tão estranha (como em, por exemplo, mesmo um “antigo estudante” indigente como Raskólnikov ou um burocrata desempregado como o Homem do Subsolo podem de alguma forma bancar seus servos).

            O ponto é que não é só a coisa da morte-por-canonização: há as coisas reais e alheias que ficam no caminho de nossa apreciação de Dostoiévski e precisam ser trabalhadas – até mesmo aprendendo o suficiente sobre todas as coisas estranhas até que isso pare de soar tão confuso, ou também por aceitá-la (da mesma forma que nós aceitamentos os elementos sexistas/racistas de qualquer outro livro do século dezenove) ou só fazer uma careta e ler em diante.

            Mas um ponto maior (que, sim, pode ser um pouco óbvio) é que algumas artes valem a pena o trabalho extra de passar por todos os impedimentos para sua apreciação; e os livros de Dostoiévski valem definitivamente a pena este trabalho. E isso não é só por que ele cavalga em cima do cânone do Ocidente – se alguma coisa, a despeito disso. Algo que canonização e respectivas atribuições obscurecem é que Dostoiévski não é só grande – ele é também divertido. Seus romances quase sempre possuem tramas rasgadamente boas, tétricas e intrincadas e meticulosamente dramáticas. Há assassinatos e tentativas de assassinatos e polícia e rixas de famílias disfuncionais e espiões, caras durões e mulheres perdidamente bonitas e vigaristas sebosos e doenças degenerativas e heranças repentinas e vilões sedosos e esquemas e prostitutas.

            Claro, o fato de Dostoiévski conseguir contar uma estória suculenta não é o bastante para torná-lo grande. Se fosse assim, Judith Krantz e John Grisham seriam grandes escritores de ficção, e por qualquer um ou mesmo pelos padrões comerciais eles não são nem mesmo muito bons. O que evita que Krantz e Grisham e outros contadores de história talentosos de serem artisticamente bons é que eles não possuem nenhum talento (ou interesse em) caracterização – suas tramas envolventes são habitadas por figuras cruas e pedaços de madeira pouco convincentes. (Sendo justo, há também escritores que são bons em fazer personagens complexos e plenamente realizados mas eles não parecem capazes de inserir esses personagens em uma trama crível e interessante. Mais, outros – entre o avant garde acadêmico – que parecem não estar interessados/versados em trama ou personagens, cujos movimentos dos livros ou apelo dependem inteiramente de objetivos meta-estéticos rarefeitos.)

            O que acontece com os personagens de Dostoiévski é que eles estão vivos. Por isso eu não só quero dizer que eles estão feitos de maneira bem sucedida ou desenvolvidos ou “redondos”. O melhor deles vive dentro de nós, para sempre, uma vez que nós os conhecemos. Lembre-se do orgulhoso e patético Raskólnikov, o ingênuo Devushkin, a bela e condenada Nastasia de O Idiota[12], o bajulador Lebiedev e o aranhoso Ippolit do mesmo romance; o esperto e sagaz detetive Porfiri Petrovich de Crime e Castigo (sem o qual não haveria provavelmente ficções comerciais de crime e policiais brilhantes e excêntricos); Marmeladov, o hediondo e lamentável beberrão; ou o vão e nobre viciado em roleta Aleksei Ivanovich de O Jogador; as prostitutas com coração de ouro Sonia e Liza; a cinicamente inocente Aglaia; ou o incrivelmente repugnante Smerdiakov, aquela máquina viva de ressentimento viscoso em quem pessoalmente eu vejo partes de mim mesmo e para quem eu mal consigo suportar olhar; ou as idealizadas mas demasiadamente humanas Míchkin e Aliócha, o Cristo humano condenado e a triunfante criança peregrina, respectivamente. Essas e muitas outras criaturas de FMD estão vivas – retenha que Frank chama para sua “imensa vitalidade” - não porque elas são tipos habilidosamente desenhados ou facetas de seres humanos mas porque, agindo em tramas plausíveis e moralmente constrangedoras, elas dramatizam as mais profundas partes de todos os humanos, as partes mais conflituosas, mais sérias – aquelas que estão mais em jogo. Mais, sem nunca deixar de ser indivíduos em 3D, os personagens de Dostoiévski conseguem incorporar ideologias inteiras e filosofias de vida: Raskónikov o egoísmo racional  da intelligentsia dos anos 1860, Míchkin o amor Cristão místico, o Homem do Subsolo a influencia do positivismo Europeu sobre o caráter da Rússia, Ippolit a vontade individual furiosa contra a inevitabilidade da morte, Alieksiêi a perversão do orgulho eslavo em face à decadência européia, e assim por diante...

            O empurrão aqui é que Dostoiévski escreveu ficção sobre as coisas que são realmente importantes. Ele escreveu ficção sobre identidade, moral, valor, morte, vontade, amor sexual vs. espiritual, ganância, liberdade, obsessão, razão, fé, suicídio. E ele fez isso sem reduzir seus personagens em porta-vozes e seus livros em panfletos. Sua preocupação era sempre o que é ser um ser humano – isto é, como ser uma pessoa de fato, alguém cuja vida seja informada por valores e princípios, ao invés de só um tipo esculhambado de animal que se auto-preserva.

** É possível realmente amar outro alguém? Se estou sozinho e sofrendo, todo mundo fora de mim é um alívio em potencial – eu preciso desse alguém. Mas você consegue realmente amar alguém de que você precisa tão desesperadoramente? Grande parte do amor não é preocupar-se mais com o que outra pessoa precisa? Como eu devo subordinar minha própria necessidade esmagadora para as necessidades de outro alguém que eu nem consigo sentir diretamente? E então se eu não conseguir isso, estou condenado à solidão, que eu definitivamente não quero... então estou de volta tentando superar meu egoísmo por motivos auto-interessados. Há alguma saída para esse nó?**

            É uma ironia bem conhecida que Dostoiévski, cujo trabalho é famoso pela compaixão e rigor moral, era de muitas formas um canalha na vida real – vão, arrogante, rancoroso, egoísta. Um jogador compulsivo, estava sempre quebrado, e choramingava constantemente pela sua pobreza, estava sempre implorando a seus amigos e colegas por empréstimos emergenciais que ele raramente pagava, e manteve  muitos rancores longevos em relação ao dinheiro, e fez coisas como penhorar o casaco de inverno se sua esposa para que pudesse jogar, etc.[13]

            Mas também é muito conhecido que a própria vida de Dostoiévski foi repleta de inconcebível sofrimento e drama e tragédia e heroísmo. Sua infância moscovita foi tão miserável que em seus livros Dostoiévski nunca coloca ou mesmo menciona nenhuma ação em Moscou[14]. Seu pai distante e neurastênico foi morto pelos seus próprios servos quando FMD tinha dezessete anos. Sete anos depois, a publicação de seu primeiro romance[15], e seu aval de críticos como Belinski e Herzen, fizeram de Dostoiévski uma estrela literária no mesmo tempo em que ele estava começando a envolver-se com o Círculo Petrachevski, um grupo de intelectuais revolucionários que conspiraram para incitar a revolta dos servos contra o czar. Em 1849, Dostoiévski  foi preso como conspirador, condenado, sentenciado à pena de morte, e sujeito à famosa “execução simulada de Petrachevski”, na qual os conspiradores eram vendados e amarrados a estacas e levados todos para o caminho do palco “Alvo!” do  processo do pelotão de fuzilamento antes de o mensageiro imperial galopar com o adiamento de “última hora” do misericordioso czar. Sua sentença foi comutada em aprisionamento, e o epilético Dostoiévski acabou por passar uma década na balsâmica Sibéria, retornando a S. Petersburgo em 1859 para saber que o mundo literário russo tinha se esquecido dele. Sua mulher morreu, demorada e horrivelmente; então seu dedicado irmão morreu; então o diário literário deles Época foi abaixo; então sua epilepsia começou a ficar tão ruim que ele ficava constantemente apavorado de que ele morreria ou ficaria louco por suas apreensões[16]. Contratando um estenografa de vinte e dois anos para ajudá-lo a completar O Jogador em tempo para satisfazer um editor com quem ele assinou um insano contrato entregue-até-uma-certa-data-ou-confiscarei-todos-os-direitos-autorais-de-tudo-o-que-você-escreveu, Dostoiévski se casou com essa dama seis meses depois, em tempo para fugir dos credores de Época, vagueando tristemente por uma Europa cuja influencia na Rússia ele desprezava[17], uma filha amada que morreu de pneumonia logo depois, escrevendo constantemente, pobre, frequentemente deprimido no prelúdio do ranger de dentes de suas convulsões, passando por ciclos de farras maníacas na roleta e então se esmagando por seu auto-ódio. O Volume IV do Frank relata muitas das tribulações européias de Dostoiévski via os jornais de sua jovem nova esposa, Anna Snitkina[18], cuja paciência e caridade como uma esposa podem muito bem qualificá-la como a santa padroeira dos grupos de co-dependência de hoje.[19]

** O que é “um americano”? Temos nós algo importante em comum, como americanos, ou é só que calhou de nós vivermos nas mesmas fronteiras e então temos que obedecer às mesmas leis? Como exatamente América é diferente de outros países? Há algo de verdadeiramente singular nisso? O que vincula essa singularidade? Nós falamos muito de nossos direitos especiais e liberdades, mas haveria também responsabilidades especiais por vir nascer americano? Se sim, responsabilidades para quem?**

            A biografia do Frank cobre sim todas as questões pessoais, e ele não tenta minimizar ou jogar uma pá de cal nas partes nojentas[20]. Mas seu projeto requer que Frank se empenhe sempre para relatar a vida psicológica e pessoal de Dostoiévski em seus livros e nas ideologias por trás deles. O fato de que Dostoiévski seja o primeiro e último escritor ideológico faz dele um sujeito especialmente congênito para a abordagem contextual de Joseph Frank para biografia[21]. E os quatro volumes de Dostoiévski deixam claro que o evento crucial, catalizador na vida de FMD, ideologicamente falando, foi a execução simulada de 22 de dezembro de 1849 – cinco ou dez minutos de intervalo durante o quais este fraco, neurótico e egocêntrico jovem escritor acreditou que ele estava prestes a morrer. O que resultou dentro de Dostoiévski foi um tipo de experiência de conversão, embora fique complicado, porque as convicções cristãs que informam seus escritos depois disso não eram aquelas de nenhuma igreja ou tradição, e elas estavam ligadas a algum tipo de nacionalismo místico russo e conservadorismo político[22] que levaram os soviéticos do século seguinte a suprimir ou distorcer muito do trabalho de Dostoiévski.

** A vida desse cara Jesus Cristo tem algo a me ensinar mesmo que não acredite ou não consiga acreditar que ele era divino? O que eu deveria fazer com a alegação de que alguém que era parente de Deus, e então poderia transformar a cruz em uma colheitadeira ou alguma outra coisa só com uma palavra, mesmo assim voluntariamente deixou-se pregar lá em cima, e morreu? Mesmo se nós supormos que ele era divino – como ele sabia? Ele sabia que poderia quebrar a cruz só com uma palavra? Ele sabia antecipadamente que essa morte seria só temporária (porque eu aposto que eu conseguiria subir lá em cima, também, se eu soubesse que uma eternidade feliz estaria ao lado de seis horas de sofrimento)? Mas algo disso realmente importa? Eu ainda posso acreditar em JC ou Maomé ou Quem-quer-que-seja mesmo seu não acreditar que eles eram de fato parentes de Deus? Exceto se isso significar: “acreditar em”?**

            O que parece mais importante é que a experiência de quase morte de Dostoiévksi mudou um jovem escritor tipicamente vão e na moda – um escritor muito talentoso, verdade, mas mesmo assim alguém cujas preocupações básicas eram com sua própria glória literária – em uma pessoa que acreditou profundamente em valores espirituais/morais[23] ... além disso, em alguém que acreditou que a vida sem valores espirituais/morais não era só incompleta mas depravada[24].

            Mas a grande coisa que faz Dostoiévski inestimável para escritores e leitores americanos é ele que parece possuir graus de paixão, convicção, e engajamento em temas morais profundos que nós – aqui, hoje[25] - não conseguimos ou não nos permitimos a nós mesmos. Joseph Frank faz um trabalho admirável de traçar a ação recíproca de fatores que fazem esse engajamento possível – as próprias crenças e talentos de FMD, os climas ideológicos e estéticos de seu tempo, etc. Terminando os livros de Frank, porém, eu penso que qualquer escritor/leitor americano será levado a pensar duramente sobre o que é que exatamente faz muitos outros romancistas de nossa própria época e lugar parecerem tão tematicamente rasos e leves, tão moralmente empobrecidos, em comparação com Gogol ou Dostoiévski (ou mesmo luzes menores como Liermontov e Turguêniev). A biografia de Frank nos leva a perguntar a nós mesmos por que nós parecemos requisitar de nossa arte uma distância irônica de convicções profundas e questões desesperadoras, para que escritores contemporâneos tenham que, ou fazer piadas sobre elas, ou tentar trabalhá-las sob o disfarce de algum truque formal como citações intertextuais ou justaposição incongruente, botando as coisas realmente urgentes dentro de asteriscos como parte de algum estranhamento de floreio ou alguma outra merda.

            Parte da explanação de nossa própria pobreza literária obviamente inclui nosso século e situação. Os bons e velhos modernistas, entre outras de suas conquistas, elevaram a estética no nível da ética – talvez até metafísica – e Romances Sérios depois de Joyce tendem a ser avaliados e estudados principalmente pela sua engenhosidade formal. Tal é esse legado modernista que agora nós presumimos como questão comum que literatura “séria” será esteticamente distanciada da vida real vivida. Adicione a isso o requisito de auto-consciência textual imposta pelo pós-modernismo[26] e teoria literária, é provavelmente justo dizer que Dostoiévski et al. eram livres das expectativas culturais que severamente constrangem a habilidade de nossos próprios romancistas de serem “sérios”.

            Mas é também justo observar, com Frank, que Dostoiévski operou sob seus próprios constrangimentos culturais: um governo repressivo, censura estatal, e especialmente a popularidade do pensamento pós-Iluminista europeu, muito do qual foi diretamente contra crenças que prezava e sobre as quais quis escrever. Para mim, a verdadeira coisa admirável e inspiradora sobre Dostoiévski não é só que ele era um gênio; ele era também corajoso. Ele nunca parou de se preocupar com sua reputação literária, mas ele também nunca parou de promulgar coisas fora de moda nas quais ele acreditava. E ele fez isso não só ignorando (agora também conhecido como “transcendendo” ou “subvertendo”) as circunstâncias culturais adversas na quais ele estava escrevendo, mas confrontando-as, engajando-se nelas, especificamente e pelo nome.

            É, na verdade, falso que nossa cultura literária seja niilista, ao menos não no sentido radical de Bazarov de Turguêniev. Mas há algumas tendências que nós acreditamos serem más, qualidades que nós odiamos e tememos.  Dentre elas estão o sentimentalismo, ingenuidade, arcaísmo, fanatismo. Seria melhor chamar nossa própria cultura artística de hoje como um ceticismo congênito. Nossa intelligentsia[27] desconfia de crenças fortes, convicção aberta. Paixão material é uma coisa, mas paixão ideológica nos enoja em algum nível profundo. Nós acreditamos que ideologia é agora a província dos rivais SIGs e PACs todos tentando ter seu pedaço da grande torta verde[28]... e, olhando ao redor, nós vemos que é isso mesmo. Mas o Dostoiévski de Frank apontaria (ou provavelmente balançaria seus punhos ou voaria em cima de nós e gritaria) que se é assim, é parcialmente porque nós abandonamos esse campo. Que nós o abandonamos para fundamentalistas cuja rigidez impiedosa e avidez pelo julgamento mostram que eles não tem a mínima noção dos “valores cristãos” que eles querem impor aos outros. Para as milícias de direita e teóricos conspiratórios cuja paranóia sobre o governo supõem que o governo seja bem melhor organizado e eficiente do que ele verdadeiramente é. E, na academia e nas artes, para o movimento do Politicamente Correto dogmático e crescentemente absurdo, cuja obsessão com meras formas de enunciação e discurso mostram muito bem como nossos melhores instintos liberais se tornaram estéreis, como foram removidos do que é realmente importante – causa, sentimento, crença.

            Dê uma olhada culminativa em um só fragmento do famoso “Explanação Necessária” de Ippolit em O Idiota:

            “Qualquer um que ataque caridade individual,” eu começo, “ataca a natureza humana e lança desprezo sobre dignidade pessoal. Mas a organização de “caridade pública” e o problema da liberdade individual são suas questões distintas, e não mutuamente excludentes. Bondade individual sempre permanecerá, porque é um impulso individual, o impulso vivo de uma personalidade para extrair uma direta influência sobre outra... Como você pode dizer, Bahmutov, o que significa uma associação como essa da personalidade de alguém com outra pode ter sobre o destino daqueles associados?”

            Você pode imaginar algum de nossos maiores romancistas permitir que um personagem diga coisas como essas (não, pense você, como um hipócrita bombástico para que algum herói irônico consiga apontar seu dedo para ele, mas como parte de um monólogo de dez páginas de alguém tentando decidir se deve cometer um suicídio)? A razão para que você não consiga é que não permitiria: um romancista como esse seria, segundo nossas luzes, pretensioso e extenuante e bobo. A apresentação direta de um discurso como esse em um Romance Sério hoje iria provocar não ultraje nem invectiva, mas pior – uma sobrancelha levantada e um sorriso cool. Talvez, se o romancista foi verdadeiramente grande, um zombado seco no The New Yorker. O romancista seria (e isso é a verdadeira visão do inferno em nossa época) alvo de gargalhadas por toda a cidade.

            Então ele – nós, escritores de ficção – não nos permitiríamos (ou não conseguiríamos) usar arte séria para fazer avançar ideologias[29]. O projeto seria como Quixote de Menard. As pessoas ou iriam rir ou ficariam com vergonha de nós. Diante disso (e isso é um dado), quem devemos culpar pela falta de seriedade de nossa ficção séria? A cultura, os que riem? Mas eles não riram (ou não conseguiriam rir) se um fragmento de ficção moralmente apaixonante e apaixonadamente moral fosse também engenhoso e radiantemente ficção humana. Mas como fazê-lo assim? Como – para um escritor hoje, mesmo um escritor talentoso de hoje – reunir a coragem para pelo menos tentar? Não há fórmulas ou garantias. Há, porém, modelos. Os livros do Frank fazem de um deles concreto e vivo e terrivelmente instrutivo.

David Foster Wallace (1962-2008), romancista, ensaísta e professor americano, teve seu auge após o lançamento de Infinite Jest, em 1996. No Brasil, teve editados os livros Entrevistas com Homens Hediondos (contos) e Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (ensaios).



Guilherme Bandeira, formado em direito pela FGV e graduando em filosofia pela USP.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Ana Akhmátova: Poesia e Prosa


Ana Akhmátova: Poesia e Prosa, a poeta recita sua obra em gravações realizadas entre 1963 e 1965.

АННА АХМАТОВА (1889-1966)
Стихи и проза

1. Но я предупреждаю вас 0,28
2. «Читая Гамлета», цикл стихотворений 0,56
5. Рыбак 0,59
4. Смуглый отрок бродил по аллеям 0,34
5. Сжала руки под темной вуалью... 0,45
6. Слаб голос мой, но воля не слабеет ... 0,54
7. Ведь где-то есть простая жизнь и свет 0,59
8. Мне голос был, он звал утешно... 0,47
9. Небывалая осень построила купол высокий... 1,10
10. Муза 0,41
11. Разрыв», цикл стихотворений 1,36
12. Привольем пахнет дикий мед... 0,49
13. Клеопатра 1,15
Стихотворения из пьесы
14. «Пролог, или сон во сне» 3,35
15 Из цикла Ветер войны» 2,23
16. Родная земля 1,11
17. Вот она, плодоносная осень... 0,33
18. «Полночные стихи», цикл стихотворений 6,19
19. Летний сад 1,13
20. Приморский сонет.... 0,48
21. Об Александре Блоке 6,30
22. Из очерка «Амадео Модильяни» 15,36
23. «Реквием», цикл стихотворений 14,20

sábado, 11 de maio de 2013

Quando Tchekhov encontrou Leskov


Nikolai Leskov, 1880
Conforme conta Donald Rayfield em "Anton Chekhov: A Life", em 8 de outubro de 1883, Leskov, já famoso por seus contos, chegava em Moscou para uma estadia de cinco dias juntamente com Nikolai Leikin, editor de São Petersburgo. Ao chegar na cidade, Leikin resolve apresentar o contista veterano ao iniciante Tchekhov, que já havia lhe confessado admiração pelo autor de Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk.

Após Anton conduzir Leskov por um circuito de bordéis da Av. Soboliév que terminou no Salon des Variétés, Tchekhov relatou o seguinte diálogo com um Leskov já bêbado:

"Você sabe quem eu sou?"
"Sim, eu sei."
"Não sabe não. Eu sou um místico."
"Eu sei disso."
"Você vai morrer antes do seu irmão."
"Talvez."
"Te ungirei com óleo, assim como Samuel ungiu Davi... Escreva."

Tchekhov em 1882
Tchekhov escreveu, e se tornou o sucessor de Leskov como grande narrador da Rússia. Os dois se viram pouquíssimas vezes novamente, se vendo pela última vez pouco antes da morte de Leskov em 1895. Ah, Leskov acertou a profecia.

sábado, 30 de março de 2013

Como era terrível para ele quando surgia de repente em seu espírito a imagem viva e clara do destino humano e de seu significado, e quando entrevia num lampejo um paralelo entre aquele significado e sua própria vida, quando dentro de sua cabeça se derramavam, umas sobre as outras, várias questões vitais, e rodavam, em desordem, de modo atemorizante, como pássaros despertados por um raio repentino de sol, numa ruína adormecida.
- Oblómov, Ivan Gontcharóv 

segunda-feira, 4 de março de 2013

Morre, aos 94 anos, Joseph Frank, biógrafo de Dostoiévski

Joseph e e Marguerite Frank
Conforme noticiado hoje pelo O Globo, com informações do The New York Times, Joseph Frank, faleceu dia 24 de fevereiro, quarta passada, em decorrência de uma insuficiência cardíaca. Estudioso americano da obra de Dostoiévski, Frank ficou famoso por sua extensa biografia sobre o autor, para a qual foram necessários cerca de trinta anos de pesquisa e cinco grande tomos. Biografia esta que anos mais tarde seria editada e condensada em um tomo só por Mary Petrusewicz.

Edição condensada
No Brasil, os cinco volumes da biografia foram lançados pela EDUSP, que também editou seu livro de ensaios, Pelo Prisma Russo, onde Frank traça as raízes do processo criativo de Dostoiévski, realizando uma imersão na cultura e literatura russa.











Links
O senhor Dostoiévski, na revista Cult nº 163
A consagração do profeta, por Manuel da Costa Pinto
Joseph Frank's Dostoyevsky, ou Feodor's Guide, ensaio de David Foster Wallace

sexta-feira, 1 de março de 2013

Amanhã: Sábado russo em SP

Amanhã o Museu Lasar Segall abrirá suas portas para a celebração da cultura russa:


A segunda edição do Sábado Russo, promovido pelo Grupo de Pesquisa E.XXI, em parceria com o Museu Lasar Segall e com a Editora 34, contará com lançamentos, mesa de discussão, exibição de filmes e leitura de poesias. A programação ocorre no Museu Lasar Segall, no dia 02 de março, a partir das 14h00, com a seguinte programação: 

14h00 – abertura
Lançamentos: 

A perspectiva inversa, de Pável Floriênski
Tradução: Neide Jallageas e Anastassia Bytsenko
São Paulo: Editora 34, 2012












Terceiro número dos cadernos de pesquisa kinoruss










15h00 – cinema

Os dias brancos - anatoções sobre a filmagem de Nostalgia de Andrei Tarkóvski
Filme de José Manuel Mouriño
Espanha, 2010, colorido, 60’, legenda em inglês

Dmítri Shostakóvitch. Sonata para viola
Filme de Aleksandr Sokúrov e Semion Aránovitch
Rússia, 1981, P&B, 75’, legenda em espanhol

17h30 - mesa

Visões de guerra e paz na Rússia Moderna e Contemporânea
Debatedores: Claudia Valladão de Mattos | Elena Vássina | Neide Jallageas

19h00 - leitura de poemas
Guerra e Poesia - Anna Akhmátova e Carlos Drummond de Andrade
Leitura: Luiz Pimentel | Tieza Tissi

Serviço:
Sábado Russo
2 de março de 2013
97 lugares
Retirar ingresso para as duas sessões e palestra 1 hora antes, na recepção do museu.


Além da extensa programação, a Editora 34 avisa no Facebook que o Camarada Bistrô também estará lá oferecendo uma diversa seleção de pratos da culinária russa.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Invasão russa no mercado editorial

Matéria de Diogo Guedes para o Jornal do Commercio de Recife sobre o boom de literatura russa no mercado editorial brasileiro.




sábado, 19 de janeiro de 2013

Voltando

Depois de mais de um ano sem um post de verdade, o blog vai voltar de fato.

Lembrando que o twitter e o Facebook ali do lado nunca pararam e são seus amigos.

sábado, 7 de julho de 2012


Vale a pena perguntar: — há quanto tempo não aparece uma obra-prima? Queremos uma Guerra e paz, um Proust do nosso tempo e, no teatro, alguém que possa ser proclamado um Shakespeare ou, menos, um Ibsen do nosso tempo. Não há nada parecido e um paralelo que se tentasse seria humilhante para todos nós. A Rússia tem uma literatura inferior à do Paraguai. Partiu de Tolstoi, Dostoievski, Gogol, Pushkin, para o zero. Poderão perguntar: — “E O don silencioso?''. Este não vale e explico: — quando veio a revolução comunista, o autor de O don silencioso era um espírito formado ainda no regime czarista. Também Gorki, inferior, bem inferior aos grandes escritores anteriores à revolução, era outro inteiramente realizado antes de 17.
- Nelson Rodrigues, Inteligencia Invertebrada 

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Lançamentos de fim de ano

Os fãs de literatura russa nunca tiveram um natal tão repleto de lançamentos como o de 2011. Primeiro tenho de voltar alguns meses para lembrar a todos do lançamento silencioso de Minha Vida (Моя жизнь), de Tchékhov, pela editora 34. Lançado originalmente em 1896, Minha Vida se destaca na bibliografia de Tchékhov como uma de suas obras mais extensas. O livro narra a história de Missail Póloznev, jovem que troca o conforto familiar pela vida proletária, tema recorrente nas obras dos autores que apareceriam mais tarde na Russia Soviética, porém incomum na obra de Tchékhov.


Minha vida: conto de um provinciano
Anton Chekhov
Editora 34
Tradução de Denise Sales
Editora 34
160 pag
R$35







O outro lançamento da editora 34, Nova antologia do conto russo, faz referência direta a Antologia do conto russo, coleção em oito volumes da editora Lux lançada em 1961 que abriu muitas portas pra literatura russa no país. A Nova antologia tem valor quase histórico no mercado editorial por conter autores inéditos no Brasil, como Nicolai Karamzin, fundador da prosa russa, ou Vsiévolod Gárchin, um dos maiores contistas da Russia do século XIX desconhecido no ocidente. Além destes, encontramos alguns velhos conhecidos: Dostoiévski, Tolstói, Gógol, Tchékhov, Púchkin, Liérmontov e Turguêniev, cobrindo dois séculos de prosa russa de maneira unica.

Nova antologia do conto russo 
(1792-1998)
Organização de Bruno Gomide
Editora 34
648 pag
R$74







A Ateliê Editorial lança Teatro Russo - Literatura e Espetáculo, das professoras Elena Vássina e Arlete Cavalieri: "Esta publicação traz um amplo debate sobre os  mais variados aspectos, que  cercam a história e a estética da arte teatral na Rússia. O exame  atento da interação orgânica entre as diferentes linguagens, que conformam o ato teatral, confere aos textos aqui presentes extremo interesse pelo alto grau de inovação investigativa na abordagem de questões cruciais para os estudos do fenômeno do teatro, tais como a arte do ator e a do encenador, a função do diretor, o papel do dramaturgo e do texto literário,  a criação do cenógrafo e do coreógrafo na estruturação do texto cênico."

Teatro Russo - Literatura e Espetáculo
Elena Vássina e Arlete Cavalieri
Ateliê Editorial
432 pag
R$59










Por fim, depois de surpreendentes 142 anos após o lançamento original da obra, os brasileiros poderão ler pela primeira vez em tradução direta do russo, Guerra e Paz (Война и миръ) de Tolstói (Cosac Naify). Esta edição encerra um capítulo na história editorial brasileira, iniciado há mais ou menos uma década, quando os clássicos da literatura russa foram pouco a pouco recebendo o tratamento merecido das nossas editoras. Rubens Figueiredo, já famoso por traduzir outros clássicos de Tolstói, demorou três anos para traduzir a obra que levou cinco exaustivos anos de pesquisa, escrita e reescrita de Tolstói (e sua esposa, claro). Antes tarde do que nunca.

Guerra e Paz
Liev Tolstói
Tradução de Rubens Figueiredo
Cosac Naify
R$198









Links adicionais

domingo, 27 de novembro de 2011

Lançamento de Contos de Sebastopol, de Tolstói

Contos de Sebastopol
Liev Tolstói
Tradução: Sonia Branco
Editora: Hedra
ISBN: 9788577152551
R$ 42,00
160 páginas

Liev Tolstói (1828-1910) nasceu em uma família da alta nobreza, ficou órfão ainda pequeno e recebeu de herança a propriedade Iásnaia Poliána, onde viveu a maior parte de sua vida, e que veio a se tornar fonte primordial para o desenvolvimento de suas idéias e ações. Sem completar nenhuma formação e entediado com a vida aristocrática, engajou-se, em 1851, nos exércitos do Cáucaso, seguindo depois para a Guerra da Crimeia. Nessa mesma década, escreveu suas primeiras obras, já obtendo boa recepção de crítica e público. Nos anos 60, dedicou-se a atividades pedagógicas fundando escola em suas terras, e iniciou-se o ciclo dos seus grandes romances. Nos anos 80 atravessou crise de ordem moral e religiosa que marcou sua produção literária. Em 1910, deixou suas terras para tornar-se peregrino, mas, dias depois, contraiu uma pneumonia, vindo a falecer na pequena estação ferroviária de Astápov. 

Contos de Sebastopol constitui-se por três relatos escritos em momentos distintos da Guerra da Crimeia. Tendo servido como segundo-tenente num regimento de artilharia durante a guerra, Tolstói reconta com minúcia episódios ocorridos durante o cerco de Sebastopol, ao mesmo tempo em que tece uma crítica contundente aos horrores da guerra. No entanto, seu veio narrativo, realizado com grande sabor, não se limita a simples descrições nem ao mero relato de fatos. Conhecedor atento da alma humana, Tolstói a explora com perspicácia, pintando com detalhes as reações dos soldados e oficiais diante das atrocidades vivenciadas e a luta por eles travada entre o desejo de escapar de situações-limite e o anseio de glória e condecorações. Os contos de Sebastopol, inéditos em português, constituem um livro extraordinário, não só pela habilidade e fineza com que o autor trata de situações vividas por ele mesmo, como pelo retrato que oferece ao leitor do desenvolvimento de um autor que irá se tornar um dos maiores expoentes da literatura universal. Tradução inédita em língua portuguesa, direta do russo.

Sonia Branco é professora de Literatura Russa na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pesquisas e publicações na área de crítica literária russa do século XIX, e membro fundador da Sociedade Brasileira Dostoiévski e do Centro Brasileiro de Estudos Russos. Traduziu Os Cossacos de Tolstói, Águas de Primavera de Turguêniev e a peça A tempestade de Ostróvski, obras ainda não publicadas.
A Editora Hedra e a Livraria da Travessa convidam para o lançamento da edição no dia 29 de novembro, com palestra da tradutora Sonia Branco.

Serviço
Livraria da Travessa • Auditório
Shopping Leblon • Avenida Afrânio de Melo 
Franco, 290 • 2º piso
dia 29.11.2011  às 19h30
Rio de Janeiro/RJ

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Noites egípcias e outros contos

Nicolai Karamzin por Vasili Tropinin
A impressão que se tem da literatura russa em geral é uma só: romances densos, obras imensas como Guerra e Paz e Os Irmãos Karamazov, mas nem sempre foi assim. Até o início do século XIX, a Rússia era dominada pela poesia, e a prosa era tida como uma arte inferior. Com a modernização do país, veio também a reforma no alfabeto e a ideia de usar a escrita para propósitos literários. Entre 1740 e 1830, a Rússia só produziu poesia, com exceção dos contos de Nicolai Karamzin (Николай Карамзин), dono de uma prosa afrancesada, fluida, mas famoso mesmo pelos seus doze volumes de A História da Rússia.

Além de Karamzin, a única prosa conhecida da Rússia era a que vinha de fora do país, o mercado editorial começava a borbulhar com traduções de Goethe, Richardson e literatura francesa. Porém, em 1830, tudo mudaria graças ao, até então, poeta nacional, Alexander Púchkin, já famoso por seu romance em verso Eugênio Oneguin (Евгений Онегин), ao lançar a coleção de contos do falecido Belkin, onde ele se passa por mero editor das histórias deste autor. No mesmo ano, Gógol escrevia Tardes na fazenda próxima a Didanka (Вечера на хуторе близ Диканьки), coleção de contos com forte influência de Púchkin, e mais tarde formaria as raízes da prosa russa.

Dados estes fatos, chega às minhas mãos a edição de uma seleção um tanto peculiar da prosa de Púchkin: Noites Egípcias e Outros Contos, da Hedra. Peculiar, pois, além de alguns contos de Belkin já conhecidos, encontramos contos que dificilmente seriam lidos em qualquer outra língua que não o russo, como o conto que abre o livro, A casinha solitária na Ilha de Vassili (Уединённый домик на Васильевском). Texto considerado apócrifo, a história foi contada por Púchkin em uma festa na casa de Karamzin. Vladimir Titov, um dos convidados da festa, a redigiu e apresentou ao poeta para correções. É inegável a relação do poeta com a obra, dada a semelhança do conto com um de seus esboços, O demônio apaixonado, além dos inegáveis toques sobrenaturais já famosos em seus trabalhos, como em O cavaleiro de bronze.

Contos de Belkin
Os três próximos textos fazem parte da coleção do velho Belkin: Do editor, A nevasca e A senhorita camponesa. “Do editor” nada mais é do que um inventivo Púchkin falando sobre Belkin, o falecido contador de causos. “A nevasca” (Метель) faz sua terceira aparição em tradução direta no Brasil, a primeira sendo de Tatiana Belinky, na coletânea Salada Russa, e a segunda de Klara Gourianova, nos Contos de Belkin. Vale notar que a tradução mais conhecida, de Belinky, remove a epígrafe: um trecho da balada “Svetlana” de Vassili Jukóvski, que também serve como anúncio de que o conto nada mais é do que uma versão em prosa da balada, a mulher que se dirige ao próprio casamento em meio a uma nevasca mas que acaba em um "final feliz". Já  "A senhorita camponesa” (Барышня-крестьянка) é um Romeu e Julieta russo mais próximo da comédia. Como a própria tradutora, Cecília Rosas nota: "um conto permeado de referências literárias, a mais direta é às de Karamzin, em particular a Pobre Liza." A diferença é que a Liza de Karamzin é ingênua, sente-se culpada por enganar os pais, a Liza de Púchkin é só sorrisos ao enganar o hussardo.

Em História do povoado de Goriúkhino (История села Горюхина), Púchkin dá voz a Belkin mais uma vez para criar uma paródia d'A História da Rússia de Karamzin em menor escala, mostrando como um proprietário de terras pode acabar com um povoado com uma simples decisão: tirando o poder de seu povo. Púchkin mostra aquela velha certeza de que quanto mais fidalgo, mais mimado e quanto mais humilde o camponês, mais subserviente. Mas ao perceber que levando a idéia adiante os censores não teriam tanta piedade, "O povoado" encerra apenas como mais um conto inacabado entre vários, e não o forte romance histórico que poderia ser.
Cleópatra era tão lasciva que muitas vezes se prostituia, e tão bonita que muitos homens escolhiam pagar com a vida por uma noite com ela.
Púchkin por Kiprenski
Da frase do historiador romano Sextus Aurelius Victor, Púchkin extrai o conto que dá nome e também fecha a coletânea. Apesar do título, o que mais chama atenção aqui é a introdução, onde Púchkin discorre sobre a árdua vida de um poeta célebre, onde qualquer sofrimento é razão para um soneto e qualquer amante motivo de uma composição. O conto, também inacabado, acompanha Tchárski, poeta que se vê quase obrigado a ajudar um improvisador napolitano a ganhar algum dinheiro. A obra ficou famosa sob as acusações de indecoro e desrespeito ao ser recitada por uma jovem em um sarau em Perm. Tal fama não se deve ao escândalo em si, mas pelo artigo escrito por Dostoiévski em defesa da obra.

Ler Noites egípcias me remete à crítica de James Joyce a Púchkin, em que o autor questiona como alguém pode se entreter por tão simples histórias de damas e cavaleiros, e sugere ainda que as pessoas "naquele tempo" deviam ser simples, mas que hoje nem tanto. Segundo Joyce, Púchkin viveu como um garoto, escreveu como um garoto e morreu como um garoto. Se as descrições tão atuais de Púchkin aos problemas humanos não bastam para provar o valor de sua prosa, ou mesmo o humor aplicado aos fatos tão comuns não bastam pra provar o astuto narrador que Púchkin foi, o que provaria?



Autor: Aleksandr Púchkin
Editora: Hedra
Tradutor: Cecília Rosas
ISBN: 978-85-7715-17
Ano: 2010
Edição:
Páginas: 156

Isaac Babel

Por Aline Veras
O inventor do silêncio 
O início do século XX é lembrado na História pela série de guerras devastadoras que resultaram em assassinatos, crimes, tragédias e revoluções tecnológicas, propagandísticas e políticas. Foi o século do nazismo, fascismo, comunismo e outros “ismos”. Talvez o que menos conseguimos lembrar ou associar, é o quanto a política e a ideologia influenciaram a arte naquele período. E podem acreditar, a maioria dos artistas sofreram profundas transformações para se adaptar às novas exigências. Se houvesse resistência, o menor dos castigos impostos ao artista seria a convivência com o ostracismo. Se ele não tivesse essa “sorte”, ou era assassinado ou mandado para os confins da Terra para viver em isolamento, além de ser submetido a trabalhos forçados. Tudo isso para fazer com que ele repensasse seu posicionamento e colocasse o juízo no lugar. 

Um autPollock
A pesquisadora inglesa Frances Stonor Saunders conta, em seu livro Quem pagou a conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura, muitas artimanhas promovidas pela agência de inteligência civil do governo dos Estados Unidos, a CIA, para financiar artistas e intelectuais com o objetivo de reduzir o espaço para qualquer arte de conteúdo social, ou seja, comunista. Um caso peculiar é o do hoje consagrado pintor Jackson Pollock que ficou conhecido por seu trabalho no movimento do expressionismo abstrato. O que muitos podem não saber é que Pollock foi um dos artistas beneficiados por essa missão. A CIA fez uma verdadeira promoção dos quadros de Pollock os colocando como a representação da democracia estadunidense em detrimento da arte soviética, de caráter realista. Se não fosse a massiça propaganda em prol da suposta liberdade trazida pela democracia ocidental encarnada na pintura de Pollock, como queria crer os agentes da CIA, será que o expressionismo abstrato de Pollock seria tão valorizado quanto é ainda na atualidade? Pollock seria considerado um gênio se não fosse por essa doutrinação ideológica? 

A realidade é que as ideologias do século passado fizeram com que a propaganda ganhasse dimensões gigantescas afetando bastante a cultura. A literatura, claro, não escapou desse domínio. Embora houvesse críticas e recusas em aderir aos movimentos, muitos escritores levantaram a bandeira de algumas dessas convicções políticas; um deles foi o russo Isaac Emmanuelovich Bábel (Исаа́к Эммануи́лович Ба́бель).

Escritor da barbárie humana
“Quando uma frase nasce, não é nem tão boa nem tão ruim. O segredo do seu sucesso está em um ponto crucial que mal se pode discernir. Devemos pegar a chave desse enigma gentilmente com os dedos, esquentando-a. E depois a chave deve dar uma volta, e não duas”
Boris Schnaiderman, o precursor da tradução direta de obras russas para a língua portuguesa, afirmou em seu ensaio No cerne da prosa que Bábel é o autor que melhor sintetiza os extremos daquele período da História da Rússia e do mundo: “Os contos de Isaac Bábel parecem-nos agora texto-paradigma do século XX. Com seu sabor acre de sangue e terra, com sua violência que nos deixa perplexos, eles estão realmente entre os escritos que expressaram melhor aquele século de horror e de mudança”. Ele acrescenta em sua produção literária, Guerra em Surdina, que a obra do escritor é “um adeus ao mundo sequencial e lógico do século XIX. O brutal, o descomunal, o inesperado, marcados pela desumanidade e incoerência, irrompem ali com estrépito e uma explosão de colorido”.

Babel
Apesar de muito pouco conhecido pelos leitores fora da Rússia, Bábel tinha importantes admiradores. Um deles é o escritor brasileiro Rubem Fonseca que escreveu a seguinte frase acerca do estilo literário do autor: “Bábel buscava padrões de excelência impossíveis de serem alcançados por qualquer outro artista (...) Por isso escreveu tão pouco, com exatidão, uma concisão esplendente.”

Nascido na cidade de Odessa, localizada na Ucrânia, no ano de 1894, Isaac Bábel era de família judia e por causa desse fato sofreu com o extremo preconceito em uma época em que o judaísmo era um estigma. A Rússia, assim como boa parte dos países da Europa, mantinha uma forte antipatia pelos judeus, que eram perseguidos sumariamente tanto no período tsarista quanto no pós-Revolução Russa. “Em 40 meninos, apenas dois judeus podiam ingressar na classe preparatória”, escreveu Bábel para seu amigo e mentor Maksim Górki sobre a política de quotas das escolas daquele período. Górki, aliás, foi quem publicou os primeiros textos de Babel nas revistas A Crônica (Летопись) e Vida Nova (Новая жизнь). 

De aliado a inimigo da Revolução 
“Eu sou um escritor russo. Se eu não vivesse com o povo russo, deixaria de escrever. Eu seria como um peixe fora da água.”
Quando eclodiu a Revolução comunista de 1917, Isaac Babel ficou ao lado dos bolcheviques (Большевик) e, em 1920, atuou como correspondente na guerra russo-polonesa. É a partir dessa experiência, que o escritor irá compor a série de 36 contos reunidos na coletânea O Exército de Cavalaria, que é considerado a sua obra-prima. Foi já durante esse período que Babel começou a se desencantar com o regime soviético. Assim ele escreveu em seu diário: “Todos dizem que estão lutando pela justiça e todos fazem pilhagens. (...) Assassinatos, é intolerável, baixezas e crimes... Carnificina. O comandante militar e eu cavalgamos por entre as fileiras, pedindo aos homens que não massacrem os prisioneiros.”

Quando Josef Stálin ascendeu ao poder do Estado soviético, seu homem de confiança, Andrei Jdanov, determinou a linha literária na qual os escritores deveria seguir dali por diante: a literatura soviética teria de ser a “expressão dos sucessos e êxitos do sistema socialista”. Durante o I Congresso de Escritores da União Soviética, realizado em 1934, Jdanov declarou aos artistas que a cultura seria usada como ferramenta na luta pela consolidação do comunismo. A nova política cultural foi extremamente violenta e anti-ocidental. Dos 600 delegados que participaram do Congresso, 200 foram mortos pelo regime nos anos seguintes.

Babel fichado
A exigência afetou diversos artistas, entre eles Isaac Babel que passou a produzir raros textos, pois não conseguia seguir os cânones literários oficiais. “Eu inventei um novo gênero. O gênero do silêncio”, afirmou. 
Babel foi preso em 1939, acusado de espionagem. Segundo a escritora Cynthia Ozick, após a prisão, agentes da NKVD, serviço secreto precursor da KGB, confiscaram todos os papeis de Bábel que depois foram destruídos. Entre eles, haveria contos inacabados, peças teatrais, roteiros de filmes e traduções. 
Depois de uma série de torturas e interrogações na prisão da Lubyanka, em Moscou, o escritor foi executado em 27 de janeiro de 1940 por um pelotão de fuzilamento. 
“Eu sou inocente. Nunca fui um espião. Nunca permiti nenhuma ação contra a União Soviética. Eu me acusei falsamente. Fui forçado a fazer acusações falsas contra mim e contra outros. Só peço uma coisa: deixem-me terminar a minha obra!”
Últimas palavras registradas no processo. 
Quando ainda vivia sob a proteção de Górki, Bábel foi muitas vezes ao exterior onde participava de congressos, seminários e visitava familiares, amigos e intelectuais. Após sua prisão e consequente morte, muitos se perguntaram por que o autor sempre voltava para a União Soviética, mesmo sabendo que corria perigo.

Yuri Annenkov, famoso retratista, pintor, gravador, cartunista, escritor e crítico, conhecia intimamente o modo de pensar político de Bábel. Em suas memórias, Annenkov escreveu sobre os muitos encontros que tivera com o autor em Paris e sobre as cartas que recebera dele até o início de 1930: “O modo de ser de Bábel mudara significativamente nos últimos meses. É verdade que ainda era muito brincalhão, mas os temas de suas conversas eram diferentes. Sua última estada na União Soviética e a crescente repressão a arte criativa através das exigências e das instruções do Estado, o desiludiram completamente. Era intolerável para ele escrever dentro da estrutura da ‘mentalidade de caserna da ideologia soviética’, e, contudo, ele não sabia como poderia viver de outra forma”. 

Características literárias 
Bábel era um “despreocupado, inquieto, mulherengo, quase um vagabundo, um cavalariano, um propagandista, pai de três crianças engendradas em três mulheres diferentes, sendo que somente uma delas é legalmente sua esposa.” Foi assim que a escritora Cynthia Ozick definiu a personalidade do autor em um ensaio dedicado a ele. Segundo Ozick, as características literárias de Bábel residiam em sua própria maneira de viver. E como ele gostava de viver! Bábel parecia um garoto mirrado e míope que tinha um apetite insaciável por adquirir experiências. Queria conhecer o mundo, as pessoas, a natureza do ser humano com seus exemplares os mais diversos e controversos.
“A amplidão e o objetivo de sua visão social permitiu-lhe ver o mundo pelos olhos dos camponeses, soldados, padres, rabinos, crianças, artistas, atores, mulheres de todas as classes. Tornou-se amigo de prostitutas, cocheiros, jóqueis; sabia o que era ficar sem um centavo, viver no limite da pobreza e marginalizado. Foi ao mesmo tempo o poeta da cidade e um lírico da vida rural. (...) Vive de uma maneira robusta, inquisitiva e faminta: seu apetite pelo que é imprevisivelmente humano é gargantuesco, inclusivo, excêntrico. Ele é cheio de truques, malandro, irônico, um amante instável, um impostor imprudente – saindo dessas centenas de fogosos ‘eus’, verdades insidiosas arrastam-se para fora, uma por uma, em um rosto, na cor do céu, em uma poça de lama, em uma palavra. É como se ele fosse uma membrana irritável, sujeita a cada vibração das criaturas.”
Lionel Trilling, crítico literário que foi um dos primeiros a escrever seriamente sobre Bábel em inglês, destaca a concisão do autor: 
“a busca da palavra (le mot juste) ou frase que produzirá seu efeito com uma rapidez implacável, seu extraordinário poder de distorção significativa, o esboço rápido, o notável deslocamento do interesse, a mudança de ênfase e, de maneira geral, sua maneira de apresentar os fatos numa perspectiva diversa daquela em que aparecem na ‘cópia fiel e autenticada’”. 
A filha legítima do escritor, Nathalie Bábel, quase não tinha lembranças do pai quando ele foi levado pela polícia soviética. Apenas tem recordações dos anos de sofrimento pelo qual passou por ter crescido sem a presença dele e também por não entender os motivos que fizeram Bábel escolher a permanência em seu país natal. Já adulta, pôde pesquisar o trabalho paterno e procurar informações acerca de sua morte nos arquivos da NKVD. No prefácio do livro Isaac Bábel: Contos Escolhidos, assim ela sustenta a opinião que formulou sobre o estilo literário do pai: 
“A obra de Babel desafia as classificações. Do meu ponto de vista, para simplificar, a justaposição de coisas compatíveis e coisas incompatíveis mantém a prosa de Babel em um estado de tensão constante e lhe dá o seu caráter original. Abordar Babel esperando ver em sua obra a literatura russa tradicional, pode levar a um desapontamento, ou a um sentimento de descoberta.”
Assim são as obras de Isaac Bábel: precisas, breves e cheias de violência, piedade, comédia e iluminação. Às vezes trazem a brutalidade mais cruel, às vezes a vivacidade alegre de um pôr-do-sol no campo.

Bibliografia
O Exército de Cavalaria, tradução de Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade
Maria – Uma peça e cinco histórias, tradução de Aurora Fornoni Bernardini, Boris Schnaiderman e Homero Freitas de Andrade