quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

"O Dostoiévski de Joseph Frank", de David Foster Wallace

O Dostoiévski de Joseph Frank¹

David Foster Wallace
Tradução: Guilherme Bandeira

Dê uma olhada prolegômena em duas citações. A primeira é do Edward Dahlberg, um carrancudo do nível-Dostoiévski, se algum dia em inglês houve algum:

“Os cidadãos se protegem contra os gênios pela adoração icônica. Pelo toque da vara de condão, perturbadores divinos são traduzidos com bordados suínos.[2]

A segunda é do Pais e Filhos de Turguêniev:
- Nesta época, negação é o mais útil de tudo – e nós negamos –
- Tudo?
- Tudo!
O que, não só em arte e poesia... mas também... horrível dizer...
Tudo. Repetido por Bazarov, com uma indescritível compostura.


            Retrospectivamente, em 1957 um Joseph Frank, então com trinta e oito anos, professor de Literatura Comparativa em Princeton, está preparando aulas sobre existencialismo, e começa seu trabalho pelo Memórias do Subsolo de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski. Como todo mundo que leu pode confirmar, Memórias (1864) é um pequeno romance poderoso mas extremamente estranho, e ambas as qualidades têm a ver com o fato de que este livro é ao mesmo tempo universal e particular. A “doença” auto-diagnosticada do protagonista – uma mistura de grandiosidade e auto-desprezo, raiva e covardia, fervor ideológico e inabilidade auto-consciente de agir de acordo com suas convicções: seu caráter paradoxal e auto-negativo – faz dele uma figura universal em quem podemos ver partes de nós mesmos, o mesmo tipo de tipo de arquétipo eterno como Ajax ou Hamlet. Mas ao mesmo tempo, Memórias do Subsolo e seu Homem do Subsolo são de fato impossíveis de entender sem algum conhecimento do clima intelectual da Rússia nos anos de 1860, particularmente o frisson do socialismo utópico e estética utilitarista então em voga entre a intelligentsia radical, uma ideologia que Dostoiévski repugnava com um tipo de paixão com que só Dostoiévski conseguia repugnar.

            De qualquer forma, Professor Frank, enquanto passeava por este pano de fundo contextual particular para dar aos seus alunos uma leitura abrangente de Memórias, começou a se interessar por usar a ficção de Dostoiévski como uma espécie de ponte entre duas formas distintas de interpretar literatura, um viés puramente estético formal vs. uma crítica sócio-barra-ideológica que só se preocupa com as suposições temáticas e filosóficas por trás delas[3]. Esse interesse, mais quarenta anos de trabalho intelectual, rendeu os primeiros quatro volumes da pesquisa projetada em cinco volumes da vida e época e escritos de Dostoiévski. Todos os volumes foram publicados pela Princeton U. Press. Todos os quatro são intitulados Dostoiévski e têm subtítulos: As Sementes da Revolta, 1821-1849 (1976); Os Anos de Provação, 1850-1859 (1984); Os Efeitos da Liberação, 1860-1865 (1986); e esse ano, em uma capa dura extremamente cara, Os Anos Milagrosos, 1865-1871. Professor Frank deve estar lá com seus setenta e cinco anos, e a julgar pela sua foto na contra capa de Os Anos Milagrosos ele não está exatamente vigoroso[4], e provavelmente todos os estudiosos sérios de Dostoiévski estão esperando ansiosamente para ver se Frank agüenta tempo suficiente para trazer seu estudo enciclopédico até o começo dos anos 1880, quando Dostoiévski acabou o quarto de seus Grandes Romances[5], proferiu seu famoso Discurso sobre Púchkin, e morreu. Mesmo que o quinto volume de Dostoiévski não seja escrito, porém, a publicação agora do quarto garante o status de Frank como o biógrafo definitivo de um dos melhores escritores de ficção que já existiu.

** Sou uma pessoa boa? Lá no fundo, eu quero mesmo ser uma pessoa boa, ou eu somente quero parecer uma pessoa boa para que as pessoas (incluindo eu mesmo) me aprovem? Há diferença? Como eu vou saber de fato se estou me trapaceando, moralmente falando?**

            De certa forma, os livros de Frank não são nenhum pouco biografias literárias, pelo menos da mesma forma que o livro do Ellmann sobre Joyce e o de Bate sobre Keats são. Por um lado, Frank é tanto um historiador cultural quanto ele é um biógrafo – seu objetivo é criar um contexto exaustivo e preciso para os trabalhos de FMD, para colocar a vida e a escrita do autor dentro do relato da vida intelectual da Rússia do século dezenove. O James Joyce de Elmann, praticamente o modelo pelo qual quase todas as biografias literárias são medidas, não vai nem perto dos detalhes do Frank sobre ideologia, política ou teoria social.  O que Frank pretende é mostrar que uma leitura abrangente da ficção de Dostoiévski é impossível sem uma compreensão detalhada das circunstâncias culturais nas quais seus livros foram concebidos e para qual eles se dispõe a contribuir. Isso, Frank argumenta, é porque os trabalhos maduros de Dostoiévski são fundamentalmente ideológicos e não podem ser verdadeiramente apreciados a não ser que se entenda os objetivos que os informam. Em outras palavras, a mistura de universal e particular que caracteriza Memórias do Subsolo marca de fato todos dos melhores trabalhos de FMD, um escritor cujo “desejo evidente”, Frank diz, é “dramatizar seus temas morais-espirituais contra o pano de fundo histórico da Rússia”.

            Outra característica fora do padrão da biografia do Frank é a quantidade de atenção crítica que ele devota aos livros que Dostoiévski efetivamente escreveu. “É a produção dessas obras de arte que faz, no fim, valer a pena recontar a vida de Dostoiévski”, seu prefácio ao Os Anos Milagrosos, “e meu propósito, como nos primeiros volumes, é mantê-las em primeiro plano ao invés de tratá-las como um acessório da vida per se”. Ao menos um terço do último volume é dedicado a uma leitura detida das coisas que Dostoiévski produziu na sua incrível meia década – Crime e Castigo, O Jogador, O Idiota, O Eterno Marido e Demônios[6]. O objetivo dessas leituras é explicativo ao invés de argumentativo ou orientado teoricamente; seus objetivos são voltados para explicar tão claro quanto possível o que o próprio Dostoiévski quis que seus livros significassem. Mesmo que este viés assuma que não haja algo como a Falácia Intencional[7], isso parece prima facie justificado pelo projeto global de Frank, que é sempre traçar e explicar a gênese do romance pelo engajamento ideológico do próprio Dostoiévski com a história e cultura da Rússia.

** O que exatamente “fé” significa? Como em “fé religiosa”, “fé em Deus”, etc. Não é basicamente louco acreditar em algo para qual não haja provas? Há realmente alguma diferença entre o que nós chamamos de fé e algumas tribos primitivas sacrificando virgens em vulcões porque eles acreditavam que isso produziria um tempo bom? Como alguém tem fé antes de ser apresentado à razão suficiente para ter fé? Ou é de alguma forma precisar ter fé uma razão suficiente para ter fé? Mas então qual é o tipo de necessidade de que nós estamos falando?**

            Para realmente avaliar a façanha do Professor Frank – e não só a façanha de ter absorvido e digerido as milhões de páginas restantes dos manuscritos de Dostoiévski e notas e cartas e jornais e biografias de contemporâneos e estudos críticos em centenas de outras línguas – é importante entender quantas abordagens diferentes à biografia e críticas ele está tentando casar. Outros estudos – especialmente aqueles com objetivos teóricos – focam quase exclusivamente no contexto, tratando o autor e seus livros simplesmente como funções de preconceitos, dinâmica de poder, e desilusões metafísicas de sua era. Algumas biografias procedem como se os sujeitos de seus próprios trabalhos já tenham sido descobertos, e então eles gastam todo o seu tempo traçando a relação de uma vida pessoal com os significados literários que o biógrafo presume que são fixos e incontestáveis. Por outro lado, muitos em nossa era de “estudos críticos” tratam o autor dos livros hermeticamente, ignorando fatos sobre as circunstâncias do autor e crenças que ajudam a explicar, não só sobre o que é seu trabalho, como também por que possui uma magia particular de uma personalidade mágica individual, estilo, voz, visão, etc.[8]

*      *       *

** É o verdadeiro objetivo da minha vida passar por menos sofrimento e maior prazer quanto possível? Meu comportamento certamente parece indicar que isso é o que eu acredito, ao menos grande parte do tempo. Mas esse não é uma forma de viver egoísta? Esqueça egoísta – não é terrivelmente solitária? **

            Então, biograficamente falando, o que Frank está tentando fazer é ambicioso e proveitoso. Ao mesmo tempo, seus quatro volumes constituem um trabalho muito detalhado e muito demandante de um autor muito complexo e difícil, um escritor de ficção cujo tempo e cultura são alheios a nós. Parece difícil esperar muita credibilidade em recomendar o estudo de Frank aqui a não ser que eu dê algum tipo de argumento de por que os romances de Dostoiévski deveriam ser importantes para nós leitores na América de 1996. Isso eu posso fazer só grosseiramente, porque eu não sou um crítico literário nem um expert em Dostoiévski. Eu sou, porém, um vivente Americano que tanto tenta escrever ficção quanto gosta de lê-la, e graças a Joseph Frank eu gastei os últimos dois meses imerso na Dostoiévskinalia.

            Dostoiévski é um titã literário, e de alguma forma isso pode ser o beijo da morte, porque fica fácil considerá-lo como qualquer outro autor canônico decomposto, amavelmente morto. Seus trabalhos, e a grande montanha crítica que ele inspirou, são sempre aquisições requeridas para as bibliotecas... e lá normalmente os livros permanecem, amarelando, cheirando como livros verdadeiramente velhos cheiram, esperando para que alguém tenha que fazer um trabalho de conclusão de curso. Dahlberg está bem certo, creio eu. Fazer de alguém um ícone é transformá-lo em uma abstração, e abstrações são incapazes de uma comunicação vital com as pessoas vivas[9].

*      *       *

** Mas e se eu decidir que há um objetivo diferente, menos egoísta, menos solitário para minha vida, não será a razão para esta decisão meu desejo de ser menos solitário, significando sofrer menos dor em geral? Pode essa decisão de ser menos egoísta ser algo além de uma decisão egoísta?**

            E é verdade que há traços nos livros de Dostoiévski que são alheios e desconcertantes. Russo é notoriamente difícil de ser traduzido para o inglês, e quando você adiciona a essa dificuldade os arcaísmos da linguagem literária do século dezenove, a prosa/diálogo de Dostoiévski pode ficar com maneirismos e pleonástica e boba[10]. Mais, há a empolação da cultura na qual os personagens de Dostoiévski habitam. Quando as pessoas estão incomodadas, por exemplo, elas fazem coisas como “balançar seus punhos” ou chamam umas às outras de “canalhas” ou “voam para cima” das outras. Falantes usam pontos de exclamação em quantidades vistas hoje somente em tiras de humor. A etiqueta social hoje nos parece rígida ao ponto do absurdo – pessoas estão sempre “pedindo explicações” entre elas ou mesmo “sendo recebidas” ou “não sendo recebidas” e obedecendo a convenções de boas maneiras barrocas mesmo quando elas estão furiosas[11]. Todo mundo tem um sobrenome longo e difícil-de-pronunciar e um nome Cristão – mais patronímico, mais algumas vezes  um diminutivo, então você quase precisa manter uma tabela de nomes dos personagens.  Categorias militares obscuras e hierarquias burocráticas abundam; além disso, há uma rígida e totalmente bizarra distinção de classe que é difícil fixar e entender suas implicações, especialmente porque a realidade econômica da sociedade russa antiga é tão estranha (como em, por exemplo, mesmo um “antigo estudante” indigente como Raskólnikov ou um burocrata desempregado como o Homem do Subsolo podem de alguma forma bancar seus servos).

            O ponto é que não é só a coisa da morte-por-canonização: há as coisas reais e alheias que ficam no caminho de nossa apreciação de Dostoiévski e precisam ser trabalhadas – até mesmo aprendendo o suficiente sobre todas as coisas estranhas até que isso pare de soar tão confuso, ou também por aceitá-la (da mesma forma que nós aceitamentos os elementos sexistas/racistas de qualquer outro livro do século dezenove) ou só fazer uma careta e ler em diante.

            Mas um ponto maior (que, sim, pode ser um pouco óbvio) é que algumas artes valem a pena o trabalho extra de passar por todos os impedimentos para sua apreciação; e os livros de Dostoiévski valem definitivamente a pena este trabalho. E isso não é só por que ele cavalga em cima do cânone do Ocidente – se alguma coisa, a despeito disso. Algo que canonização e respectivas atribuições obscurecem é que Dostoiévski não é só grande – ele é também divertido. Seus romances quase sempre possuem tramas rasgadamente boas, tétricas e intrincadas e meticulosamente dramáticas. Há assassinatos e tentativas de assassinatos e polícia e rixas de famílias disfuncionais e espiões, caras durões e mulheres perdidamente bonitas e vigaristas sebosos e doenças degenerativas e heranças repentinas e vilões sedosos e esquemas e prostitutas.

            Claro, o fato de Dostoiévski conseguir contar uma estória suculenta não é o bastante para torná-lo grande. Se fosse assim, Judith Krantz e John Grisham seriam grandes escritores de ficção, e por qualquer um ou mesmo pelos padrões comerciais eles não são nem mesmo muito bons. O que evita que Krantz e Grisham e outros contadores de história talentosos de serem artisticamente bons é que eles não possuem nenhum talento (ou interesse em) caracterização – suas tramas envolventes são habitadas por figuras cruas e pedaços de madeira pouco convincentes. (Sendo justo, há também escritores que são bons em fazer personagens complexos e plenamente realizados mas eles não parecem capazes de inserir esses personagens em uma trama crível e interessante. Mais, outros – entre o avant garde acadêmico – que parecem não estar interessados/versados em trama ou personagens, cujos movimentos dos livros ou apelo dependem inteiramente de objetivos meta-estéticos rarefeitos.)

            O que acontece com os personagens de Dostoiévski é que eles estão vivos. Por isso eu não só quero dizer que eles estão feitos de maneira bem sucedida ou desenvolvidos ou “redondos”. O melhor deles vive dentro de nós, para sempre, uma vez que nós os conhecemos. Lembre-se do orgulhoso e patético Raskólnikov, o ingênuo Devushkin, a bela e condenada Nastasia de O Idiota[12], o bajulador Lebiedev e o aranhoso Ippolit do mesmo romance; o esperto e sagaz detetive Porfiri Petrovich de Crime e Castigo (sem o qual não haveria provavelmente ficções comerciais de crime e policiais brilhantes e excêntricos); Marmeladov, o hediondo e lamentável beberrão; ou o vão e nobre viciado em roleta Aleksei Ivanovich de O Jogador; as prostitutas com coração de ouro Sonia e Liza; a cinicamente inocente Aglaia; ou o incrivelmente repugnante Smerdiakov, aquela máquina viva de ressentimento viscoso em quem pessoalmente eu vejo partes de mim mesmo e para quem eu mal consigo suportar olhar; ou as idealizadas mas demasiadamente humanas Míchkin e Aliócha, o Cristo humano condenado e a triunfante criança peregrina, respectivamente. Essas e muitas outras criaturas de FMD estão vivas – retenha que Frank chama para sua “imensa vitalidade” - não porque elas são tipos habilidosamente desenhados ou facetas de seres humanos mas porque, agindo em tramas plausíveis e moralmente constrangedoras, elas dramatizam as mais profundas partes de todos os humanos, as partes mais conflituosas, mais sérias – aquelas que estão mais em jogo. Mais, sem nunca deixar de ser indivíduos em 3D, os personagens de Dostoiévski conseguem incorporar ideologias inteiras e filosofias de vida: Raskónikov o egoísmo racional  da intelligentsia dos anos 1860, Míchkin o amor Cristão místico, o Homem do Subsolo a influencia do positivismo Europeu sobre o caráter da Rússia, Ippolit a vontade individual furiosa contra a inevitabilidade da morte, Alieksiêi a perversão do orgulho eslavo em face à decadência européia, e assim por diante...

            O empurrão aqui é que Dostoiévski escreveu ficção sobre as coisas que são realmente importantes. Ele escreveu ficção sobre identidade, moral, valor, morte, vontade, amor sexual vs. espiritual, ganância, liberdade, obsessão, razão, fé, suicídio. E ele fez isso sem reduzir seus personagens em porta-vozes e seus livros em panfletos. Sua preocupação era sempre o que é ser um ser humano – isto é, como ser uma pessoa de fato, alguém cuja vida seja informada por valores e princípios, ao invés de só um tipo esculhambado de animal que se auto-preserva.

** É possível realmente amar outro alguém? Se estou sozinho e sofrendo, todo mundo fora de mim é um alívio em potencial – eu preciso desse alguém. Mas você consegue realmente amar alguém de que você precisa tão desesperadoramente? Grande parte do amor não é preocupar-se mais com o que outra pessoa precisa? Como eu devo subordinar minha própria necessidade esmagadora para as necessidades de outro alguém que eu nem consigo sentir diretamente? E então se eu não conseguir isso, estou condenado à solidão, que eu definitivamente não quero... então estou de volta tentando superar meu egoísmo por motivos auto-interessados. Há alguma saída para esse nó?**

            É uma ironia bem conhecida que Dostoiévski, cujo trabalho é famoso pela compaixão e rigor moral, era de muitas formas um canalha na vida real – vão, arrogante, rancoroso, egoísta. Um jogador compulsivo, estava sempre quebrado, e choramingava constantemente pela sua pobreza, estava sempre implorando a seus amigos e colegas por empréstimos emergenciais que ele raramente pagava, e manteve  muitos rancores longevos em relação ao dinheiro, e fez coisas como penhorar o casaco de inverno se sua esposa para que pudesse jogar, etc.[13]

            Mas também é muito conhecido que a própria vida de Dostoiévski foi repleta de inconcebível sofrimento e drama e tragédia e heroísmo. Sua infância moscovita foi tão miserável que em seus livros Dostoiévski nunca coloca ou mesmo menciona nenhuma ação em Moscou[14]. Seu pai distante e neurastênico foi morto pelos seus próprios servos quando FMD tinha dezessete anos. Sete anos depois, a publicação de seu primeiro romance[15], e seu aval de críticos como Belinski e Herzen, fizeram de Dostoiévski uma estrela literária no mesmo tempo em que ele estava começando a envolver-se com o Círculo Petrachevski, um grupo de intelectuais revolucionários que conspiraram para incitar a revolta dos servos contra o czar. Em 1849, Dostoiévski  foi preso como conspirador, condenado, sentenciado à pena de morte, e sujeito à famosa “execução simulada de Petrachevski”, na qual os conspiradores eram vendados e amarrados a estacas e levados todos para o caminho do palco “Alvo!” do  processo do pelotão de fuzilamento antes de o mensageiro imperial galopar com o adiamento de “última hora” do misericordioso czar. Sua sentença foi comutada em aprisionamento, e o epilético Dostoiévski acabou por passar uma década na balsâmica Sibéria, retornando a S. Petersburgo em 1859 para saber que o mundo literário russo tinha se esquecido dele. Sua mulher morreu, demorada e horrivelmente; então seu dedicado irmão morreu; então o diário literário deles Época foi abaixo; então sua epilepsia começou a ficar tão ruim que ele ficava constantemente apavorado de que ele morreria ou ficaria louco por suas apreensões[16]. Contratando um estenografa de vinte e dois anos para ajudá-lo a completar O Jogador em tempo para satisfazer um editor com quem ele assinou um insano contrato entregue-até-uma-certa-data-ou-confiscarei-todos-os-direitos-autorais-de-tudo-o-que-você-escreveu, Dostoiévski se casou com essa dama seis meses depois, em tempo para fugir dos credores de Época, vagueando tristemente por uma Europa cuja influencia na Rússia ele desprezava[17], uma filha amada que morreu de pneumonia logo depois, escrevendo constantemente, pobre, frequentemente deprimido no prelúdio do ranger de dentes de suas convulsões, passando por ciclos de farras maníacas na roleta e então se esmagando por seu auto-ódio. O Volume IV do Frank relata muitas das tribulações européias de Dostoiévski via os jornais de sua jovem nova esposa, Anna Snitkina[18], cuja paciência e caridade como uma esposa podem muito bem qualificá-la como a santa padroeira dos grupos de co-dependência de hoje.[19]

** O que é “um americano”? Temos nós algo importante em comum, como americanos, ou é só que calhou de nós vivermos nas mesmas fronteiras e então temos que obedecer às mesmas leis? Como exatamente América é diferente de outros países? Há algo de verdadeiramente singular nisso? O que vincula essa singularidade? Nós falamos muito de nossos direitos especiais e liberdades, mas haveria também responsabilidades especiais por vir nascer americano? Se sim, responsabilidades para quem?**

            A biografia do Frank cobre sim todas as questões pessoais, e ele não tenta minimizar ou jogar uma pá de cal nas partes nojentas[20]. Mas seu projeto requer que Frank se empenhe sempre para relatar a vida psicológica e pessoal de Dostoiévski em seus livros e nas ideologias por trás deles. O fato de que Dostoiévski seja o primeiro e último escritor ideológico faz dele um sujeito especialmente congênito para a abordagem contextual de Joseph Frank para biografia[21]. E os quatro volumes de Dostoiévski deixam claro que o evento crucial, catalizador na vida de FMD, ideologicamente falando, foi a execução simulada de 22 de dezembro de 1849 – cinco ou dez minutos de intervalo durante o quais este fraco, neurótico e egocêntrico jovem escritor acreditou que ele estava prestes a morrer. O que resultou dentro de Dostoiévski foi um tipo de experiência de conversão, embora fique complicado, porque as convicções cristãs que informam seus escritos depois disso não eram aquelas de nenhuma igreja ou tradição, e elas estavam ligadas a algum tipo de nacionalismo místico russo e conservadorismo político[22] que levaram os soviéticos do século seguinte a suprimir ou distorcer muito do trabalho de Dostoiévski.

** A vida desse cara Jesus Cristo tem algo a me ensinar mesmo que não acredite ou não consiga acreditar que ele era divino? O que eu deveria fazer com a alegação de que alguém que era parente de Deus, e então poderia transformar a cruz em uma colheitadeira ou alguma outra coisa só com uma palavra, mesmo assim voluntariamente deixou-se pregar lá em cima, e morreu? Mesmo se nós supormos que ele era divino – como ele sabia? Ele sabia que poderia quebrar a cruz só com uma palavra? Ele sabia antecipadamente que essa morte seria só temporária (porque eu aposto que eu conseguiria subir lá em cima, também, se eu soubesse que uma eternidade feliz estaria ao lado de seis horas de sofrimento)? Mas algo disso realmente importa? Eu ainda posso acreditar em JC ou Maomé ou Quem-quer-que-seja mesmo seu não acreditar que eles eram de fato parentes de Deus? Exceto se isso significar: “acreditar em”?**

            O que parece mais importante é que a experiência de quase morte de Dostoiévksi mudou um jovem escritor tipicamente vão e na moda – um escritor muito talentoso, verdade, mas mesmo assim alguém cujas preocupações básicas eram com sua própria glória literária – em uma pessoa que acreditou profundamente em valores espirituais/morais[23] ... além disso, em alguém que acreditou que a vida sem valores espirituais/morais não era só incompleta mas depravada[24].

            Mas a grande coisa que faz Dostoiévski inestimável para escritores e leitores americanos é ele que parece possuir graus de paixão, convicção, e engajamento em temas morais profundos que nós – aqui, hoje[25] - não conseguimos ou não nos permitimos a nós mesmos. Joseph Frank faz um trabalho admirável de traçar a ação recíproca de fatores que fazem esse engajamento possível – as próprias crenças e talentos de FMD, os climas ideológicos e estéticos de seu tempo, etc. Terminando os livros de Frank, porém, eu penso que qualquer escritor/leitor americano será levado a pensar duramente sobre o que é que exatamente faz muitos outros romancistas de nossa própria época e lugar parecerem tão tematicamente rasos e leves, tão moralmente empobrecidos, em comparação com Gogol ou Dostoiévski (ou mesmo luzes menores como Liermontov e Turguêniev). A biografia de Frank nos leva a perguntar a nós mesmos por que nós parecemos requisitar de nossa arte uma distância irônica de convicções profundas e questões desesperadoras, para que escritores contemporâneos tenham que, ou fazer piadas sobre elas, ou tentar trabalhá-las sob o disfarce de algum truque formal como citações intertextuais ou justaposição incongruente, botando as coisas realmente urgentes dentro de asteriscos como parte de algum estranhamento de floreio ou alguma outra merda.

            Parte da explanação de nossa própria pobreza literária obviamente inclui nosso século e situação. Os bons e velhos modernistas, entre outras de suas conquistas, elevaram a estética no nível da ética – talvez até metafísica – e Romances Sérios depois de Joyce tendem a ser avaliados e estudados principalmente pela sua engenhosidade formal. Tal é esse legado modernista que agora nós presumimos como questão comum que literatura “séria” será esteticamente distanciada da vida real vivida. Adicione a isso o requisito de auto-consciência textual imposta pelo pós-modernismo[26] e teoria literária, é provavelmente justo dizer que Dostoiévski et al. eram livres das expectativas culturais que severamente constrangem a habilidade de nossos próprios romancistas de serem “sérios”.

            Mas é também justo observar, com Frank, que Dostoiévski operou sob seus próprios constrangimentos culturais: um governo repressivo, censura estatal, e especialmente a popularidade do pensamento pós-Iluminista europeu, muito do qual foi diretamente contra crenças que prezava e sobre as quais quis escrever. Para mim, a verdadeira coisa admirável e inspiradora sobre Dostoiévski não é só que ele era um gênio; ele era também corajoso. Ele nunca parou de se preocupar com sua reputação literária, mas ele também nunca parou de promulgar coisas fora de moda nas quais ele acreditava. E ele fez isso não só ignorando (agora também conhecido como “transcendendo” ou “subvertendo”) as circunstâncias culturais adversas na quais ele estava escrevendo, mas confrontando-as, engajando-se nelas, especificamente e pelo nome.

            É, na verdade, falso que nossa cultura literária seja niilista, ao menos não no sentido radical de Bazarov de Turguêniev. Mas há algumas tendências que nós acreditamos serem más, qualidades que nós odiamos e tememos.  Dentre elas estão o sentimentalismo, ingenuidade, arcaísmo, fanatismo. Seria melhor chamar nossa própria cultura artística de hoje como um ceticismo congênito. Nossa intelligentsia[27] desconfia de crenças fortes, convicção aberta. Paixão material é uma coisa, mas paixão ideológica nos enoja em algum nível profundo. Nós acreditamos que ideologia é agora a província dos rivais SIGs e PACs todos tentando ter seu pedaço da grande torta verde[28]... e, olhando ao redor, nós vemos que é isso mesmo. Mas o Dostoiévski de Frank apontaria (ou provavelmente balançaria seus punhos ou voaria em cima de nós e gritaria) que se é assim, é parcialmente porque nós abandonamos esse campo. Que nós o abandonamos para fundamentalistas cuja rigidez impiedosa e avidez pelo julgamento mostram que eles não tem a mínima noção dos “valores cristãos” que eles querem impor aos outros. Para as milícias de direita e teóricos conspiratórios cuja paranóia sobre o governo supõem que o governo seja bem melhor organizado e eficiente do que ele verdadeiramente é. E, na academia e nas artes, para o movimento do Politicamente Correto dogmático e crescentemente absurdo, cuja obsessão com meras formas de enunciação e discurso mostram muito bem como nossos melhores instintos liberais se tornaram estéreis, como foram removidos do que é realmente importante – causa, sentimento, crença.

            Dê uma olhada culminativa em um só fragmento do famoso “Explanação Necessária” de Ippolit em O Idiota:

            “Qualquer um que ataque caridade individual,” eu começo, “ataca a natureza humana e lança desprezo sobre dignidade pessoal. Mas a organização de “caridade pública” e o problema da liberdade individual são suas questões distintas, e não mutuamente excludentes. Bondade individual sempre permanecerá, porque é um impulso individual, o impulso vivo de uma personalidade para extrair uma direta influência sobre outra... Como você pode dizer, Bahmutov, o que significa uma associação como essa da personalidade de alguém com outra pode ter sobre o destino daqueles associados?”

            Você pode imaginar algum de nossos maiores romancistas permitir que um personagem diga coisas como essas (não, pense você, como um hipócrita bombástico para que algum herói irônico consiga apontar seu dedo para ele, mas como parte de um monólogo de dez páginas de alguém tentando decidir se deve cometer um suicídio)? A razão para que você não consiga é que não permitiria: um romancista como esse seria, segundo nossas luzes, pretensioso e extenuante e bobo. A apresentação direta de um discurso como esse em um Romance Sério hoje iria provocar não ultraje nem invectiva, mas pior – uma sobrancelha levantada e um sorriso cool. Talvez, se o romancista foi verdadeiramente grande, um zombado seco no The New Yorker. O romancista seria (e isso é a verdadeira visão do inferno em nossa época) alvo de gargalhadas por toda a cidade.

            Então ele – nós, escritores de ficção – não nos permitiríamos (ou não conseguiríamos) usar arte séria para fazer avançar ideologias[29]. O projeto seria como Quixote de Menard. As pessoas ou iriam rir ou ficariam com vergonha de nós. Diante disso (e isso é um dado), quem devemos culpar pela falta de seriedade de nossa ficção séria? A cultura, os que riem? Mas eles não riram (ou não conseguiriam rir) se um fragmento de ficção moralmente apaixonante e apaixonadamente moral fosse também engenhoso e radiantemente ficção humana. Mas como fazê-lo assim? Como – para um escritor hoje, mesmo um escritor talentoso de hoje – reunir a coragem para pelo menos tentar? Não há fórmulas ou garantias. Há, porém, modelos. Os livros do Frank fazem de um deles concreto e vivo e terrivelmente instrutivo.

David Foster Wallace (1962-2008), romancista, ensaísta e professor americano, teve seu auge após o lançamento de Infinite Jest, em 1996. No Brasil, teve editados os livros Entrevistas com Homens Hediondos (contos) e Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (ensaios).



Guilherme Bandeira, formado em direito pela FGV e graduando em filosofia pela USP.




[1] David Foster Wallace, “Joseph Frank’s Dostoievsky”, Consider the Lobster and Other Essays, Black Bay Books, Little, Brown and Company, 2006, 1st. Ed., pp. 255-274.
[2] Do “Can These Bones Live?”em The Edward Dahlberg Reader, New Directions, 1957.
[3] Claro, teoria literária comparativa contemporânea é toda voltada para mostrar que não há distinção real entre essas duas formas de ler – ou, antes, é sobre mostrar que estética pode sempre praticamente ser reduzido à ideologia. Para mim, uma razão para que todo o projetos do Frank valha tanto a pena é que ele mostra um jeito todo diferente de casar leituras formais e ideológicas, um viés que não é nem um pouco tão abstruso como a teoria literária (algumas vezes) reducionista e (muito frequentemente) estraga prazeres.
[4] A quantidade de tempo de biblioteca que ele deve ter gastado teria tirado o couro de qualquer um, eu imagino.
[5] Entre os paralelos impressionantes com Shakespeare está o fato de FMD ter quatro trabalhos de seu “período maduro” que são considerados obras-primas absolutas – Crime e Castigo, O Idiota, Demônios (também conhecido como Os Demônios, As Bestas, Os Possessos), Os Irmãos Karamazov – todos os quatro envolvendo homicídios e são (indiscutivelmente) tragédias.
[6] Volume III, Os Efeitos da Liberação, inclui uma leitura explicativa muito boa de Memórias, traçando a gênese do livro como uma resposta ao “egoísmo radical” que se tornou moda pelo Que fazer?  de N. G. Chernyshevsky e identificando o Homem do Subsolo como basicamente uma caricatura paródica. A explanação de Frank para a má interpretação generalizada de Memórias (muitas pessoas não lêem o livro como um conte philosophique, e eles assumem que Dostoiévski desenhou o Homem do Subsolo como um arquétipo sério nível-Hamlet) também ajuda a explicar por que os romances mais famosos de FMD são frequentemente lidos e admirados sem nenhuma apreciação real de suas premissas ideológicas: “A função parodística do caráter do [Homem do Subsolo] tem sido sempre obscurecida pela imensa vitalidade de sua personificação artística”. Isto é, de certa forma Dostoiévsky era muito bom para seu próprio bem.
[7] Nenhuma vez em seus quatro volumes o Professor Frank menciona a Falácia Intencional (no caso de fazer tempo que você não estuda teoria literária, a Falácia Intencional (=”Julgar o significado ou sucesso de uma obra de arte por o que o autor expressou ou ostensivamente pretendeu ao produzi-la”). A FI e a Falácia Afetiva (= “O julgamento de uma obra de arte com base no seu resultado, especialmente seu efeito sentimental) são as duas maiores proibições de uma crítica textual de tipo objetivo, especialmente o New Criticism) ou tenta desviar da objeção de que sua biografia a comete por toda ela. De certa forma esse silêncio é compreensível, já que o tom que Frank mantém por toda sua leitura é o de máxima objetividade e comedimento: ele não está aí para impor alguma teoria particular ou método para decodificar Dostoiévski, e ele mantém uma orientação clara para lutar contra os críticos que escolheu golpear de machado o trabalho de FMD. Quando Frank de fato quer questionar ou criticar certa leitura (como em ataques ocasionais no Problemas da Poética de Dostoiévski de Bakthin, ou na resposta verdadeiramente brilhante ao Dostoévski e o Parricídio de Freud no apêndice do Volume I), ele sempre o faz ao simplesmente apontar que alguns registros históricos e/ou memórias e cartas do próprio Dostoiévski contradizem alguns pressupostos da crítica que foi feita. Seu argumento nunca é que alguém está errado, só que eles não possuem todos os fatos.
                O que também é interessante aqui é que Joseph Frank vem de uma época como estudioso no mesmo momento em que o New Criticism está impregnando a academia dos EUA, e que a boa e velha Falácia Intencional é praticamente a pedra angular do New Criticism; e também, como Frank não está meramente rejeitando ou argumentando contra a FI mas procedendo como se ela nem existisse, é tentador imaginar todo tipo de corrente parricida malévola rodeando seu projeto – Frank dando uma silenciosa banana gigante para seus professores antigos. Mas se nós nos lembrarmos da remoção do New Criticism do autor da equação interpretativa fez praticamente nada para tornar o caminho mais claro para a teoria literária pós-estruturalista (como em por exemplo Desconstrução, psicanálise lacaniana, estudos cultuais marxistas/feministas, novo historicismo foucaultiano/greenblattiano, e Cia.) e que teoria literária tende a fazer com o próprio texto o que o New Criticism fez com o autor do texto, começa a parecer que Joseph Frank está dando uma meia volta rápida fora da teoria (teoria sendo nossa própria mania radical-intelectual de nossa época, ao invés do niilismo ou do egoísmo radical como eram na Rússia de FMD) e tentando compor um sistema de leitura e interpretação tão completamente diferente dela (por exemplo, o viés de Frank) parece uma investida mais manifesta contra premissas da teoria literária do que qualquer ataque frontal poderia ser.
[8] Este selo singular próprio é uma das maiores razões para alguém vir amar um autor. A forma como você consegue dizer, frequentemente em só dois parágrafos, que algo foi escrito por Dickens, ou Tchekhov, ou Woolf, ou Salinger, ou Coetzee, ou Ozick. A qualidade é impossível de descrever ou dizer diretamente – eles só apresentam uma vibração, um tipo de perfume de sensibilidade – e a tentativa do crítico de transformar isso em questões de “estilo” quase sempre são toscas.
[9] É necessário passar só um semestre tentado ensinar literatura no colégio para perceber que a maneira mais fácil de matar a vitalidade de um autor de potenciais leitores é apresentar um autor à frente de seu tempo como “grande” ou “clássico”. Porque então esse autor se torna para seu alunos como remédios ou vegetais, algo que as autoridades dizem ser “bom para elas” de que eles “deveriam gostar”, a partir deste ponto as membranas pestanejantes dos alunos descem, e todo mundo acaba por fazer um ensaio crítico como requisito sem sentir nada de real ou relevante. É meio que retirar todo oxigênio de um quarto para depois tentar fazer fogo.
[10] ... especialmente na tradução vitoriana da Sra. Constance Garnett, que nos anos 1930 e 40 colocou a tradução de Dostoiévski & Tolstoi no mercado, e cuja interpretação em 1935 de O Idiota tem coisas como (pegando quase ao acaso):
“Natasia Fillippovna!” General Epanchin articulou reprovadoramente.
. . .
“Estou muito grato por te conhecer aqui, Kólia”, disse Míchkin a ele. “Você pode me ajudar? Eu preciso ir até a Natasia Fillipovna. Eu perguntei a Adelion Alexandrovitch para me levar lá, mas você vê que ele dorme. Você me levaria lá, visto que não sei as ruas, nem o caminho?
. . .
A frase lisonjeou e tocou e agradou enormemente General Ivolgin: ele derreteu de repente, instantaneamente mudou seu som, e disparou uma longa, entusiasta explanação.
. . .
E mesmo as traduções aclamadas Knopf por Richard Pevear e Larissa Volokhonsky, a prosa (em, por exemplo, Crime e Castigo) é  ainda frequentemente estranha e emperdigada:

“Chega! ele disse resoluta e solenemente. “Fora com miragens, fora com medos falsos, fora com espectros!... Há vida! Não estava eu vivo agora mesmo? Minha vida não morreu com a velha coroca! Talvez o Senhor se lembre dela em Seu reino e – chega, minha querida, é tempo de ir! Agora é o reino da razão e da luz e... e vontade e força... e nós agora devemos ver! Nós agora cruzaremos as espadas!” ele acrescentou presunçosamente, como se estivesse falando com alguma força negra e desafiando-a.

Umm, por que não só “como se ele desafiasse alguma força negra”? Você consegue desafiar a força negra sem falar com ela? Ou há algo em russo original algo que evita que a frase acima soe redundante, empolada, bem ruim da mesma forma que uma frase como “Ora! ela disse, dirigindo-se a seu companheiro e convidando-o para acompanhá-la” é ruim? Se assim, por que não reconhecer que em inglês continua ruim e apenas vamos em frente para consertá-la? Traduções literárias não podem mexer de nenhum jeito com a sintaxe? Mas russo não é uma língua flexionada – ela usa casos e declinações ao invés da ordem das palavras – então tradutores já estão mexendo com a sintaxe quando eles colocam Dostoiévski no inglês, que não se flexiona. É difícil entender por que esses tradutores precisam ser tão desajeitados.
[11] O que diabos significa “voar para cima” de alguém? Acontece milhares de vezes em todos os romances de FMD. O quê, “voar para cima” deles significa bater neles? Gritar com eles? Por que não dizer isso, se você está traduzindo?
[12] (... que era, como Caddie de Faulkner, “condenada e sabia disso”, e cujo heroísmo consiste em altivamente desafiar sua condenação que ela também julga. FMD parece também o primeiro escritor de ficção a entender quão profundamente alguém ama seu próprio sofrimento, como eles o usam e dependem dele. Nietzsche pegará o insight de Dostoiévski e o fará a pedra de toque de seu ataque devastador ao Cristianismo, e isso é irônico: em nossa própria cultura de “ateísmo iluminista” nós somos muito parecidos com a criança de Nietzsche, seus herdeiros ideológicos, e sem Dostoiévski não haveria Nietzsche, e mesmo assim Dostoiévski está entre os mais profundamente religiosos de todos os escritores.
[13] Frank não embeleza nenhuma dessas coisas, mas em sua biografia nós aprendemos que a personalidade de Dostoiévski era realmente mais contraditória do que escrota. Insuportavelmente vaidoso por sua reputação literária, ele também era atormentado por toda sua vida por o que ele via como suas inadequações artísticas; um sanguessuga e um perdulário, ele também voluntariamente assumiu a responsabilidade financeira por seu enteado, da família sórdida e ingrata de seu falecido irmão, e pelos débitos de Época, o famoso jornal literário que ele e seu irmão co-editavam. O novo Volume IV do Frank deixa claro que foram esses débitos honrosos, e não a boa e velha caloteiragem,  que enviaram o Sr. e a Sra. FMD para o exílio na Europa para evitar a prisão por dívida, e que foi só nos spas da Europa que a mania de jogo de Dostoiévski ficou fora de controle.
[14] Algumas vezes essa alergia é estranhamente notável, como por exemplo no começo da Parte 2 de O Idiota, quando Príncipe Míchkin (o protagonista) tinha deixado St. Petesburgo para ficar seis meses em Moscou: “das aventuras de Míchkin durante sua ausência de Petersburgo nós podemos dar pouca informação”, mesmo que o narrador tenha acesso a todo tipo de eventos fora de S. P. Frank não diz muito sobre a moscoufobia de FMD; é difícil descobrir do que se trata.
[15] = Gente Pobre, um “romance social” padronizado que enquadra uma (embora melosa) estória de amor com representações da pobreza urbana suficientemente aterradoras para extrair a aprovação da Esquerda socialista.
[16] É verdade que a epilepsia de FMD – incluindo as iluminações místicas que freqüentavam algumas de suas auras pré-apreensivas – tem comparativamente pouca discussão na biografia do Frank; e resenhistas como James L. Rice do London Times (ele mesmo autor de um livro sobre Dostoiévski e epilepsia) reclamaram quer Frank “não dá a ideia do impacto da doença crônica” nos ideias religiosas de Dostoiésvki e sua representação em seus romances. A questão da proporção corta para ambos os lados, porém: q. v. Jan Parker do New York Times Book Review, que gastou ao menos um terço de sua resenha ao Volume III do Frank fazendo declarações como “Me parece que o comportamento de Dostoiévski confirma integralmente o critério de diagnóstico de jogatina patológica como foi estabelecido pelo manual de diagnóstico da  Associação Americana de Psiquiatria”. No fim das contas, resenhas como essas nos ajudam apreciar a própria postura imparcial do Joseph Frank e a falta de eixos específicos para moer.
[17] Não vamos deixar de observar o fato de que o Volume IV de Frank nos fornece muita sujeira pessoal das boas. Sobre o ódio de Dostoiévski pela Europa, por exemplo, nós aprendemos que sua famosa briga com Turguêniev, que foi ostensivamente por Turguêniev ter ofendido o nacionalismo passional de Dostoiévski por atacar, de forma impressa, a Rússia e então ter mudado para a Alemanha, ele também prometeu pagá-lo de volta imediatamente e então nunca o fez. Frank é muito contido para dizer o ponto principal: é bem mais fácil viver com o sofrimento de alguém se você consegue elaborar uma queixa contra ele.
[18] Outro bônus: os volumes do Frank estão repletos de nomes maravilhosos e/ou trava-línguas – Snitkin, Dubolyobov, Golubov, von Voght, Katkov, Nekrasov, Pisarev. Você pode ser por que autores russos como Gogol e FMD fizeram uma arte fina de nomes epítetos. 
[19] Exemplo aleatório do jornal dela: “Pobre Fíodor, ele sofre muito, e está sempre irritadiço, e suscetível a voar para cima de ninharias... Não é sem conseqüência, porque outros dias são bons, quando ele é tão doce e gentil. Além disso, eu posso ver que quando ele grita comigo é por sua doença, não por seu mau temperamento.” Frank cita e comenta em longas passagens esse tipo de coisa, mas ele se mostra muito pouco consciente de que o casamento de Dostoiévski era em alguns sentidos bem doente, ao menos para os padrões de 1990 – veja por exemplo “A paciência de Anna, seja qual os prodígios de auto-comando que poderia ter custado a ela, foi amplamente compensada pela (ao menos segundo seu olhar) a imensa gratidão de Dostoiévski e seu crescente senso de união.”
[20] Veja, por exemplo, a desastrosa paixão de Dostoiévski pela cadela-mor Appolinaria Suslova, ou as torções mentais que ele fingiu para justificar suas farras no cassino... ou o fato, amplamente documentado por Frank, que FMD foi de fato um membro ativo do Círculo Petrashevski e, aliás, provavelmente dele mereceu sim ser preso pelas leis da época, e isso deu andamento a muitos outros biógrafos que tentaram dizer que Dostoiévski calhou de ser tragado pelos amigos para a reunião radical errada no momento errado.
[21] Caso não seja óbvio, “ideologia” está sendo usado aqui no seu sentido estrito e descarregado para significar qualquer sistema organizado e profundamente realizado de crenças e valores. Admito, neste tipo de definição, Tolstói e Hugo e Zola e a maioria de outros titãs do século dezenove são também escritores ideológicos. Mas a coisa sobre Dostoiévski ter talento para caracterização e para render grandes conflitos dentro (não só entre) pessoas é o que faz com que ele dramatize temas extremamente pesados e sérios sem nunca ser pregador ou redutor, isso é, sem nunca piscar para a dificuldade de conflitos morais/espirituais ou fazer o “bem” ou “redenção” parecer mais simples do que eles realmente são. Você precisa só comparar os protagonistas das conversões no A Morte de Ivan Ilich de Tolstói e Crime e Castigo de FMD para apreciar a habilidade de Dostoiévski de ser moral sem ser moralista.
[22] Aqui está outra matéria que Frank trata brilhantemente, especialmente no capítulo Casa dos Mortos do Volume III. Parte do motivo pelo qual FMD abandonou o socialismo da moda de seus vinte anos foram seus anos de prisão  com os párias absolutos da sociedade russa. Na Sibéria, ele veio a entender que os servos e pobres urbanos da Rússia na verdade odiavam os intelectuais de alta classe que queriam “libertá-los”, e esse ódio era de fato bem justificável. (Se você que ter alguma ideia de como esta ironia política dostoiévskiana pode ser traduzido para a cultura americana moderna, tente ler Recordações das Casas dos Mortos e Mau-Mauing the Flak Catchers de Tom Wolfe ao mesmo tempo.)
[23] Não surpreendentemente, as exatas crenças de FMD são idiossincráticas e complexas, e Joseph Frank é minucioso e claro e detalhista em explicar suas evoluções através dos temas dos romances (como em, por exemplo, o efeito tóxico do ateísmo egoísta no caráter da Rússia em Memórias e C&C; a deformação da paixão russa pela Europa mundana em O Jogador, e, em Míchkin de O Idiota e Zossima do Irmãos Karamazov, as implicações de um cristo humanizado sujeito literalmente às forças físicas da natureza, uma ideia central para toda a ficção que Dostoiévski escreveu depois de ver “Cristo Morto” de Holbein, o Jovem, no Museu da Basiléia em 1867).
                Mas o que Frank fez bem de forma verdadeiramente fenomenal aqui é destilar a quantidade enorme de materiais de arquivo gerados por e sobre FMD, fazendo-os compreensíveis ao invés de só usar pequenas quantidades deles como suporte uma tese crítica particular. A certo ponto, em algum lugar perto do fim do Volume III, Frank até consegue encontrar e glosar algumas obscuras notas autorais para “Socialismo e Cristianismo”, um ensaio de Dostoiévski nunca acabado, que ajudou a clarificar por que ele é tratado por alguns críticos como precursor do existencialismo:

                “A incarnação de Cristo... forneceu um novo ideal de humanidade, uma que retém sua validade desde então: “N. B. Nenhum ateu que tenha questionado a origem divina de Cristo nega o fato de que Ele seja o ideal de humanidade. O último sobre isso – Renan. Isso é muito notável.” E a lei desse novo ideal, segundo Dostoiévski, consiste no “retorno à espontaneidade, para as massas, mas livremente... Não forçosamente, mas ao contrário, o maior grau de intencionalmente e conscientemente. É claro que durante essa alta intencionalidade é ao mesmo tempo uma maior renúncia da vontade.”

[24] Os maiores inimigos do maduro e pós-convertido Dostoiévski eram os Niilistas, a descendência radical dos yuppies socialistas de 1840, cujo nome (o nome dos Niilistas) veio do mesmo discurso negador-de-tudo em Pais e Filhos de Turguêniev que foi citado no início. Mas a verdadeira batalha era mais ampla, e muito mais profunda. Não é por acidente que a grande epígrafe de Joseph Frank no Volume IV é do clássico de Kolakowki Modernity on Endless Trial, segundo o qual o abandono de Dostoiévski do socialismo utilitarista para um conservadorismo moral idiossincrático pode ser visto na mesma básica luz que o despertar de Kant do “sono dogmático” em uma deontologia pietista radical quase um século antes: “Ao virar-se contra o utilitarismo popular do Iluminismo, [Kant] também soube exatamente que o que estava em jogo era nenhum código moral particular, mas uma questão de existência ou inexistência de uma distinção entre bem e mal e, consequentemente, a questão de destino da humanidade”.
[25] (talvez sob nosso próprio tipo de feitiço niilista)
[26] (o que quer que isso seja exatamente)
[27] (que, segundo o julgamento deste resenhista, significa basicamente nós)
[28] (N.T.) PAC quer dizer Political Action Comitee e SIG, Special Interest Groups, e são, em linhas gerais, organizações voltadas para a arrecadação de fundos para as eleições americanas.
[29] Nós, claro, usaríamos sem hesitar a arte da paródia, do ridículo, do desmerecimento, ou da crítica a ideologias - mas isso é muito diferente.

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