segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Noites egípcias e outros contos

Nicolai Karamzin por Vasili Tropinin
A impressão que se tem da literatura russa em geral é uma só: romances densos, obras imensas como Guerra e Paz e Os Irmãos Karamazov, mas nem sempre foi assim. Até o início do século XIX, a Rússia era dominada pela poesia, e a prosa era tida como uma arte inferior. Com a modernização do país, veio também a reforma no alfabeto e a ideia de usar a escrita para propósitos literários. Entre 1740 e 1830, a Rússia só produziu poesia, com exceção dos contos de Nicolai Karamzin (Николай Карамзин), dono de uma prosa afrancesada, fluida, mas famoso mesmo pelos seus doze volumes de A História da Rússia.

Além de Karamzin, a única prosa conhecida da Rússia era a que vinha de fora do país, o mercado editorial começava a borbulhar com traduções de Goethe, Richardson e literatura francesa. Porém, em 1830, tudo mudaria graças ao, até então, poeta nacional, Alexander Púchkin, já famoso por seu romance em verso Eugênio Oneguin (Евгений Онегин), ao lançar a coleção de contos do falecido Belkin, onde ele se passa por mero editor das histórias deste autor. No mesmo ano, Gógol escrevia Tardes na fazenda próxima a Didanka (Вечера на хуторе близ Диканьки), coleção de contos com forte influência de Púchkin, e mais tarde formaria as raízes da prosa russa.

Dados estes fatos, chega às minhas mãos a edição de uma seleção um tanto peculiar da prosa de Púchkin: Noites Egípcias e Outros Contos, da Hedra. Peculiar, pois, além de alguns contos de Belkin já conhecidos, encontramos contos que dificilmente seriam lidos em qualquer outra língua que não o russo, como o conto que abre o livro, A casinha solitária na Ilha de Vassili (Уединённый домик на Васильевском). Texto considerado apócrifo, a história foi contada por Púchkin em uma festa na casa de Karamzin. Vladimir Titov, um dos convidados da festa, a redigiu e apresentou ao poeta para correções. É inegável a relação do poeta com a obra, dada a semelhança do conto com um de seus esboços, O demônio apaixonado, além dos inegáveis toques sobrenaturais já famosos em seus trabalhos, como em O cavaleiro de bronze.

Contos de Belkin
Os três próximos textos fazem parte da coleção do velho Belkin: Do editor, A nevasca e A senhorita camponesa. “Do editor” nada mais é do que um inventivo Púchkin falando sobre Belkin, o falecido contador de causos. “A nevasca” (Метель) faz sua terceira aparição em tradução direta no Brasil, a primeira sendo de Tatiana Belinky, na coletânea Salada Russa, e a segunda de Klara Gourianova, nos Contos de Belkin. Vale notar que a tradução mais conhecida, de Belinky, remove a epígrafe: um trecho da balada “Svetlana” de Vassili Jukóvski, que também serve como anúncio de que o conto nada mais é do que uma versão em prosa da balada, a mulher que se dirige ao próprio casamento em meio a uma nevasca mas que acaba em um "final feliz". Já  "A senhorita camponesa” (Барышня-крестьянка) é um Romeu e Julieta russo mais próximo da comédia. Como a própria tradutora, Cecília Rosas nota: "um conto permeado de referências literárias, a mais direta é às de Karamzin, em particular a Pobre Liza." A diferença é que a Liza de Karamzin é ingênua, sente-se culpada por enganar os pais, a Liza de Púchkin é só sorrisos ao enganar o hussardo.

Em História do povoado de Goriúkhino (История села Горюхина), Púchkin dá voz a Belkin mais uma vez para criar uma paródia d'A História da Rússia de Karamzin em menor escala, mostrando como um proprietário de terras pode acabar com um povoado com uma simples decisão: tirando o poder de seu povo. Púchkin mostra aquela velha certeza de que quanto mais fidalgo, mais mimado e quanto mais humilde o camponês, mais subserviente. Mas ao perceber que levando a idéia adiante os censores não teriam tanta piedade, "O povoado" encerra apenas como mais um conto inacabado entre vários, e não o forte romance histórico que poderia ser.
Cleópatra era tão lasciva que muitas vezes se prostituia, e tão bonita que muitos homens escolhiam pagar com a vida por uma noite com ela.
Púchkin por Kiprenski
Da frase do historiador romano Sextus Aurelius Victor, Púchkin extrai o conto que dá nome e também fecha a coletânea. Apesar do título, o que mais chama atenção aqui é a introdução, onde Púchkin discorre sobre a árdua vida de um poeta célebre, onde qualquer sofrimento é razão para um soneto e qualquer amante motivo de uma composição. O conto, também inacabado, acompanha Tchárski, poeta que se vê quase obrigado a ajudar um improvisador napolitano a ganhar algum dinheiro. A obra ficou famosa sob as acusações de indecoro e desrespeito ao ser recitada por uma jovem em um sarau em Perm. Tal fama não se deve ao escândalo em si, mas pelo artigo escrito por Dostoiévski em defesa da obra.

Ler Noites egípcias me remete à crítica de James Joyce a Púchkin, em que o autor questiona como alguém pode se entreter por tão simples histórias de damas e cavaleiros, e sugere ainda que as pessoas "naquele tempo" deviam ser simples, mas que hoje nem tanto. Segundo Joyce, Púchkin viveu como um garoto, escreveu como um garoto e morreu como um garoto. Se as descrições tão atuais de Púchkin aos problemas humanos não bastam para provar o valor de sua prosa, ou mesmo o humor aplicado aos fatos tão comuns não bastam pra provar o astuto narrador que Púchkin foi, o que provaria?



Autor: Aleksandr Púchkin
Editora: Hedra
Tradutor: Cecília Rosas
ISBN: 978-85-7715-17
Ano: 2010
Edição:
Páginas: 156

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