sábado, 12 de março de 2011

Quando Tolstói virou profeta

O fim da vida do escritor russo (Revista Época)


A fase final da vida de alguns grandes artistas costuma render situações excêntricas. Isso quando o espírito não morre antes do sujeito. O escritor americano Henry James terminou seus dias escrevendo relatos sem sentido e pensando que era Napoleão. Goethe morreu ansiando por mais luz, mais conhecimento. Há os autores que viram profetas. Nesse quesito, um dos casos mais curiosos envolve o escritor russo Tolstói, hoje chamado de Liev Nikoláievitch Tolstói, segundo a nova norma de transcrição fonética do russo – em vez de Leon ou Leão, como era conhecido no Brasil em outros tempos.

Tolstói (1828-1910) é um dos maiores narradores da história literária. Escreveu os romances Guerra e paz (1869) e Ana Kariênina (1877) e outras tantas obras-primas. Cético e libertino na juventude, ele se reconverteu ao cristianismo em 1882, aos 64 anos. E que reconversão espetacular: questionou a autoridade do czar, rompeu com a igreja ortodoxa russa, onde fora batizado, e criou um culto próprio, baseado na fé, na caridade e na distribuição de bens. Separou-se da mulher, Sonja Behrs, que não queria que ele doasse sua propriedade principesca, a Iásnaia Poliana, aos camponeses e beatos que o cercavam.

Não bastasse provocar a indignação da família e das autoridades, o escritor cometeu um pecado ainda maior aos olhos de seus amigos autores: romper com os fundamentos da arte pela arte. Tornou-se crente em uma arte engajada e realista, ainda que baseada nos princípios cristãos. Foi assim que escreveu romances de tese, como Ressurreição (1899), não menos belos e importantes que os anteriores.

Seus derradeiros anos, no entanto, foram marcados por ideias polêmicas. É esse o momento enfocado no interessante volume Os Últimos Dias De Tolstói (Penguin Companhia, 432 páginas, R$ 29,50) em traduções diretamente do russo. Trata-se de uma coletânea de textos de maturidade. Ou melhor, do período de rompimento maior do velho artista. A seleção foi feita pelo americano Jay Parini como material de pesquisa para seu romance A última esta-ção: os momentos finais de Tolstói, que acaba de ser adaptado para o cinema.

O volume traz o célebre texto de conversão de Tolstói, Uma confissão, de 1882, bem como a correspondência e os últimos contos de evocação folclórica. Lá está também o ensaio em que Tolstói refuta as peças de Shakespeare. Nesse texto, intitulado “Sobre Shakeaspeare e o teatro – ensaio crítico” (1906), Tolstói tenta demonstrar que a crença na genialidade do Bardo não passa de uma mentira. Tolstói leu e releu Shakespeare ao longo de 50 anos e chegou à conclusão de que ele “não pode ser reconhecido como autor grande e genial nem sequer como mediano”.

Ele desdobra sua tese ao analisar as principais peças shakespearianas, a começar pela mais elogiada de todas, Rei Lear. Tolstói reveza argumentos persuasivos e questionáveis. Entre os primeiros, aponta as falas exageradas e nada naturais dos personagens (chama Hamlet de “uma espécie de fonógrafo de Shakespeare”, que na peça fala pelo autor). Mas também condena temerariamente a moral shakespeariana, contaminada, segundo Tolstói, pelo desprezo ao povo e pela descrença na mudança da situação dos privilégios da nobreza. Acusa Shakespeare de niilista. Obviamente é um exagero. Para refutar Tolstói, basta ler as peças do autor inglês. Shakespeare transpira paixão pelo destino humano em grande parte de suas peças. Afinal, Tolstói no fim da vida foi tomado de iluminação ou enlouqueceu? Talvez ambas as alternativas sejam verificáveis. De certo modo, as ideias de um autor tão brilhante e profundo alertam para as razões bem fundamentadas – ainda que duvidosas – do extremismo religioso. 

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