sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Nicolai Leskov


Busca pela alma do povo russo
Muitos artistas sofreram com a maldição do não-reconhecimento. Só na pintura, podemos citar exemplos desde Van Gogh à Modigliani. Na música erudita, há o caso famoso do francês Claude Debussy que viu suas obras serem massacradas pelos críticos da época. Na literatura então... nem se fala. Kafka, Stendhal, Lima Barreto e tantos outros lutaram para conquistar um espaço que só foi alcançado anos após suas mortes.

Explicações para o fenômeno são inúmeras: incompreensões, polêmicas, ideologias, questões sociais e políticas... Como disse o filósofo espanhol Ortega y Gasset: "O homem é ele próprio e sua circunstância". Ou seja, não basta ter talento, o artista deve contar também com o contexto da época que, muitas vezes, definirá seu destino. Pois muito bem. E o que me dizem quando o talento não é agraciado mesmo após a morte? Nesse caso, a morte só traz mais esquecimento.

Essa longa introdução tem um objetivo, calma. Quero fazer jus a um autor que até os dias atuais está desconhecido das prateleiras, da imaginação, das lembranças, da admiração e das mãos dos leitores. Isso mesmo, quem conhecesse sua obra, muito se admiraria da sua capacidade sem igual de narrar a grande alma russa.

Narração artesanal 
Nicolai Semyonovich Leskov (Николай Семёнович Лесков) foi “O” narrador. Narrador do povo de todas as classes, todas as religiões, modos de falar, de se comportar, de viver. Conheceu  e conviveu com toda sorte de pessoas: soldados, criadas, camponeses, artesãos, comerciantes, nobres decadentes, pequeno-burgueses, fanáticos religiosos e excêntricos. “Eu conhecia a vida do povo nos mínimos detalhes e a compreendia nos mais ínfimos matizes”, afirmou o escritor que foi contemporâneo da “era de ouro” da literatura russa. Viveu à sombra de Dostoievski, Turguêniev, Tchekhov e Tolstoi que, aliás, foi um dos únicos que conseguiu enxergar a riqueza literária de Leskov.
“É estranho que Dostoievski seja tão lido... Em compensação, não compreendo por que não se lê Leskov. Ele é um escritor fiel à verdade”.
Leskov por Valentin Serov, 1894
Nascido em 1831 no povoado de Gorokhovo, em Oriol, às margens do rio Volga, em uma família de membros do clero, começou a escreveu apenas aos 29 anos quando resolveu colocar no papel todas as lendas da velha Rússia que ouvia oralmente dos mais velhos. Marco importante para a sua produção literária foi quando começou a trabalhar como ajudante de administrador de fazendas e viajou por todas as províncias da Rússia, conhecendo lugares das mais diferentes espécies e adquirindo uma experiência que estará presente em toda a sua obra. 

Essa empatia que Leskov sentia pelo povo russo é justificada pelo próprio autor: “Precisamos simplesmente conhecer a vida do povo como a própria vida (...) não estudá-lo, mas vivê-lo”. Por causa desse laço de forte intimidade, o escritor criou um estilo muito particular de narração: o falar natural dos personagens. Paulo Bezerra, tradutor de Leskov, Dostoievski e outros autores, diz que essa linguagem marcada pelo coloquial mostra o quanto o escritor foi conhecedor da vida e dos costumes russos. Leskov “recusa (...) uma observância dogmática e mecânica das normas da língua e da chamada boa escrita”, o que o aproximava de Dostoievski. Em “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, por exemplo, erros de sintaxe e declinação foram usados por Leskov para mostrar o baixo nível de escolaridade dos personagens justamente para não estilizar as falas e tornar o relato o mais verossímil possível.  Leskov considerava a narrativa como uma arte artesanal, um ofício manual. “A literatura”, diz ele em uma carta, “não é para mim uma arte, mas um trabalho manual”. 

O mais importante biógrafo de Fiódor Dostoievski, Joseph Frank, traça o seguinte perfil de Leskov no livro “Pelo Prisma Russo”: 
"Leskov era uma personalidade orgulhosa, apaixonada e frequentemente irascível; no decorrer de sua vida ele conseguiu indispor-se com quase todo mundo que conhecia, como também com todas as tendências e movimentos correntes na literatura russa. Isso também nos diz algo sobre sua impetuosa independência, sua recusa a reverenciar os lemas ideológicos do momento. Sua briga mais conhecida, causa do virtual ostracismo que os radicais lhe impuseram durante a maior parte de sua vida, envolvia os famosos incêndios de São Petersburgo, de 1862, que coincidiram aproximadamente com a circulação das proclamações sanguinárias do Rússia Jovem, que proclamavam pelo extermínio da família real e de todos os seus partidários. A maioria acreditava que os radicais tinham começado o incêndio, e o populacho suspeitava de que a população estudantil em geral fosse simpática aos supostos incendiários. Leskov, com a intenção de proteger os estudantes, publicou um artigo onde pedia à polícia que, se houvesse qualquer prova de incêndio culposo, nomeasse os culpados para que a suspeita pudesse ser retirada das costas dos inocentes. À primeira vista, nada pareceria mais inofensivo do que tal pedido, mas o fato de Leskov ter dado algum crédito à hipótese de incêndio culposo e ter, aparentemente, apelado à polícia contra os radicais, foi o suficiente para torná-lo um homem marcado". 


Dimensão utilitária 
Monumento a Leskov em Orel
Walter Benjamin, em seu famoso ensaio crítico “O narrador”, exalta as qualidades narrativas de Leskov assim como sua capacidade de observação e sua construção artesanal da história. Para ele, Leskov nada explica. Uma história abre inúmeras possibilidades para que o público vá preenchendo, procurando explicações, justificativas e soluções ao longo dos milênios. Não há finais. À medida que se ouve ou se lê uma história de Leskov, o leitor tem a possibilidade de imaginar, por conta própria, a que fim teve o personagem principal e seus coadjuvantes.

Benjamin também destaca a dimensão utilitária da literatura de Leskov que consiste seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida. Para ele, essa é a verdadeira natureza da literatura: o narrador é um homem que sabe dar conselhos. 
“Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral.”

Lady Macbeth russa
A novela talvez mais importante de Leskov é “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” (Леди Макбет Мценского уезда), publicada inicialmente em 1865, na revista Época (Эпоха), dirigida por Dostoievski.  Na verdade, a narrativa saiu com o título “Lady Macbeth do Nosso Distrito”, e foi assinada por M. Stiebnitski, pseudônimo de Leskov. Só em 1867, em coletânea, a novela foi publicada como “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”.

A história remete às lembranças de um episódio da infância de Leskov. Quando criança, o autor soube de um assassinato envolvendo uma nora e seu sogro. A mulher despejou um líquido fervente no ouvido do velho que acabou o matando. Quando descobriram que o assassino tinha sido a nora, esta foi torturada em praça pública por um carrasco. Claro que a referência não acaba aqui. Leskov também baseia-se na Lady Macbeth shakespeariana para construir a personagem Catierina lvovna, que comete vários crimes por causa do amante, Seguiêi. 

Catierina, mulher jovem e bonita, era casada com um importante e rico comerciante, Zinóvi Boríssitch, que não conseguia lhe fazer feliz. Mantinha uma vida monótona e sem muitos afazeres até que conhece o ambicioso Seguiêi e se deixa seduzir por ele. A partir daí, começa um banho de sangue em que Catierina Lvovna se torna uma leoa para conseguir alçar Seguiêi ao posto de comerciante, posição de destaque social no período.

A Lady escocesa de Shakespeare é implacável: incita Macbeth a matar todos os adversários que possam lhe tomar o trono. Ao longo de todos os assassinatos, ela mostra sua dureza de caráter e sangue frio. Mas quando consegue conquistar o seu objetivo, Lady Macbeth começa a sentir remorsos: durante o sono, tudo o que ela consegue ver são as manchas de sangue em suas mãos. Manchas que se renovam a cada dia. O remorso chega a tal ponto que ela não suporta e acaba se matando. Catierina lvovna, à luz da violenta história da Rússia, se mostra igualmente implacável em seu objetivo, mas não demonstra remorso nem loucura, apenas ódio e muita amargura por tudo o que fez e por todos os que apareceram em seu caminho.

Adaptações
O grande compositor russo Dmitri Shostakóvitch compôs uma ópera cujo libreto se baseava na “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”. O cineasta polonês Andrzej Wajda também homenageou a história adaptando-a para o cinema como “Lady Macbeth Siberiana” (Сибирская леди Макбет). 


Bibliografia
1865 - Леди Макбет Мценского уезда
Lady Macbeth do distrito de Mtzensk - Editora 34, tradução de Paulo Bezerra

5 comentários:

  1. Eu quero lê, principalmente um que me interessou "Apenas um retrato de mulher", bem intenso. Obrigada pela oportunidade de conhecer mais o autor. beijos.

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  2. Hey, man, divulga um pouco mais esse site, um site de qualidade como esse merece ser conhecido por mais pessoas. Espero que não faltem mídias para a divulgação da boa literatura russa

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  3. Parabéns, atendeu plenamente minha curiosidade e necessidade de conhecer Leskov. Gostaria muito de ler o conto Homens Interessantes desse autor e não tinha nenhuma referência dele. Pelos seus comentários convenci-me a adquirir o livro da Editora 34 (Homens Interessantes e Outras Histórias). Gostaria de perguntar se você sugeriria outras obras do mesmo autor?

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  4. claro e fácil o texto. Vou querer ler o livro pós esta boa introdução.

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