sábado, 19 de novembro de 2011

O romancista tradutor

Rubens Figueiredo, o autor nacional mais premiado deste ano, lança a primeira tradução brasileira de Guerra e paz, de Tolstói

Luís Antônio Giron para a revista Época

Rubens Figueiredo

As funções do ficcionista e do tradutor parecem se excluir. Um se dedica a suas criações e não tem tempo para pensar em outros autores, quanto mais traduzi-los. O outro se ocupa em passar textos alheios para o idioma vernáculo, e sua assinatura é ofuscada pela dos autores. Em Rubens Figueiredo, ambos se fundem na mesma pessoa. Ele escreve ficção e traduz com igual entusiasmo. Esse trânsito dá a seu trabalho uma qualidade peculiar. Seus contos e romances – oito em 30 anos de carreira – falam de memória e cotidiano, com doses de sarcasmo e crítica. As 70 traduções que fez do inglês e nove do russo exibem uma fluência difícil de encontrar numa área cada vez mais entregue a amadores e arrivistas. 

Neste ano, Figueiredo é autor de duas façanhas. Tornou-se o escritor mais premiado do Brasil ao ganhar os prestigiosos – e bem pagos – prêmios São Paulo de Literatura (R$ 200 mil) e Portugal Telecom (R$ 100 mil) por seu último romance, Passageiro do fim do dia (Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 40), de 2010. A segunda façanha está em lançar nesta semana a tradução do romance Guerra e paz, de Liev Tolstói (CosacNaify, 2.536 páginas em dois volumes, R$ 198). Trata-se da primeira tradução brasileira feita diretamente do russo da obra-prima de Tolstói (1828-1910), publicada 142 anos atrás.

Mesmo assim, ele não se acha consagrado. “Fiquei surpreso com os elogios”, diz. “Mas sigo no meu canto, fazendo o que sempre fiz.” Aos 55 anos, Rubens é um carioca pacato, casado há 20 com a escritora Leni Cordeiro. Tem dois enteados e vive entre o Rio de Janeiro e a cidade serrana de Teresópolis. Na serra, gosta de escrever. Lá terminou Guerra e paz e seu último romance.

Tolstói

Sua produção não o impede – nem o poupa – de trabalhar. Professor do ensino médio há mais de 30 anos, ele dá aulas de português no curso noturno e no supletivo do colégio estadual Manoel Cícero, na Gávea. Ele se formou e fez mestrado em português e russo na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Começou nos anos 1990 a traduzir ficção em língua inglesa, livros de Paul Auster e Susan Sontag. Há dez anos, passou aos clássicos russos: Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, contos de Anton Tchékhov e dois romances de Tolstói: Anna Kariênina e Ressurreição, entre outros. “Cheguei a Tolstói a pedido dos editores”, diz. “Mas ele acabou por marcar minha vida.” 

Nada disso havia no início, quando fazia humor – “Talento de família”, diz (é irmão de Reinaldo Figueiredo, redator de humor da TV Globo). Seus três primeiros livros – O mistério da samambaia bailarina (1986), Essa maldita farinha (1987) e A festa do milênio (1990) – eram cômicos. “A vida me parecia leve na juventude”, diz. “Curiosamente, o humor foi diminuindo de livro para livro.”

Guerra e Paz
Passageiro do fim do dia tem um tom sério: relata um dia na vida de Pedro – quase homônimo de um dos protagonistas de Guerra e paz, Pierre. Pedro é pobre. Num ônibus, dirigindo-se à casa da namorada na favela, ele pensa na vida. Ao saltar, já não é o mesmo, pois se dá conta da opressão e da finitude, as grandes questões de Tolstói. A influência não é casual. Figueiredo está às voltas com ele há sete anos, três com Guerra e paz. “Tolstói me impressiona pela consciência crítica”, diz. “Assim, ele questiona o caráter científico da história e demonstra a força do acaso. Despreza os heróis. Nivela generais, camponeses, animais e plantas.”

A transformação do pobre Pedro lembra a do nobre Pierre. Ele também amadurece, só que ao longo de 20 anos. De 1805 a 1825, esse corpulento filho ilegítimo de um conde envolve-se em orgias, herda a fortuna do pai, casa-se com a bela princesa Hélène, separa-se ao descobrir que ela é “depravada”, entra na Maçonaria e, apesar de pacifista, luta na guerra. Casa-se com a plácida Natasha e se estabelece. Nesse meio-tempo, as tropas napoleônicas invadem a Rússia e são derrotadas pelo exército do czar Alexandre I em 1812. A conquista da paz interior de Pierre corresponde à da paz nacional. Escrito entre 1863 e 1869, Guerra e paz faz um painel histórico, com 500 personagens, quase todos reais. 
Passageiro do Fim do Dia

Rubens procurou transferir ao português as inovações, a sintaxe e o léxico do romance. Segundo ele, Tolstói renovou o romance não só criando o épico moderno ao articular a vida íntima dos membros de cinco famílias nobres (fictícias) às campanhas militares do início do século XIX. “Ele registrou a fala de classes distintas. Há passagens intraduzíveis, como os diálogos dos camponeses e dos soldados. Tentei buscar correspondências coloquiais”, diz. Outra dificuldade foi manter o ritmo da narrativa, cheia de orações longas e interrupções, além do tom crítico. “Tolstói queria ser um bárbaro entre civilizados. Questionava a dominação cultural da Europa ocidental sobre o resto do mundo – encarnada em Napoleão, a figura mais saliente e atacada do livro.” O resultado é um texto nítido, sem frases intrincadas. Se em ficção ele é conciso, em tradução dá espaço à retórica de Tolstói. 

A professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, especialista em literatura brasileira atual, afirma que a obra de Figueiredo se distingue da ficção urbana atual pela densidade. “Ele aborda cenários pobres, mas seus personagens não são violentos. Eles refletem, e isso cria estranhamento. Seu estilo é amarrado, o que a gente nota em suas traduções.” Para o tradutor do russo Paulo Bezerra, o que conta não é Figueiredo ser ficcionista, mas conhecer a língua e a cultura russas. “O ficcionista cria sua ficção, mas quando traduz se coloca na mesma condição do ‘não ficcionista’: opera com ficção alheia e desaparece como ficcionista. E isso Figueiredo faz bem.”


Para Rubens, não há segredo em ser a um tempo tradutor e romancista. “Tanto um como outro se expressam numa língua. O objetivo do tradutor é recriar no vernáculo um texto de outro idioma; o do ficcionista, exprimir sua experiência.” Por isso, ele traduz com disciplina, mas faz ficção só quando tem o que dizer. Enquanto não lhe vem à cabeça uma trama, dá aulas e traduz. Planeja traduzir as memórias e os contos de Tolstói. “Não me forço. Escrever é uma necessidade que nasce da vida diária. Tanto fazer ficção como traduzir não envolvem apenas palavras. É bem mais que isso.”


Um comentário:

  1. “Não me forço. Escrever é uma necessidade que nasce da vida diária. Tanto fazer ficção como traduzir não envolvem apenas palavras. É bem mais que isso.”

    Genial. Fiquei curioso pra ler as traduções e as ficções dele.

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